sábado, 26 de setembro de 2015

Família e religião - algumas reflexões


Texto: Luiz Gonzaga Godoi Trigo


As primitivas formações familiares eram coletivas, tribais. Grupos ou clãs vagavam pela natureza em busca de alimentos, água e proteção contra o terror noturno povoado de predadores, contra outros humanos que disputavam seus territórios ou contra as terríveis forças naturais das secas, enchentes ou nevascas em uma terra plena de paisagens hostis aos humanos. 

Ao longo da história formaram-se estruturas sociais mais ou menos estáveis para proteger as crianças e os velhos, as mulheres e os doentes, para garantir direitos sobre propriedade, hierarquia social, para abrigar as crianças e o imaginário dos diversos grupos que se espalhavam e se organizavam pelo planeta. 

 Família nativa norte-americana, século XIX

Os estudos antropológicos mostram diversos tipos de agrupamento familiar ao longo da história, das culturas e civilizações. Há famílias monogâmicas, poligâmicas (famílias onde o homem possui várias mulheres ou vice-versa), casais contemporâneos com relações abertas, famílias monoparentais (com apenas um pai ou uma mãe, em geral fruto de divórcio, morte do cônjuge ou simplesmente “produção independente”). Há ainda adultos de vários sexos que se unem por diversos motivos. Esses grupos recebem a denominação de famílias e organizam-se em torno de motivos religiosos (comunidades religiosas), corporativos (empresas altamente institucionalizadas), criminosos (as máfias) ou sexuais.
A atual concepção ocidental de família tem sua origem no judaísmo antigo, nas antigas leis do Império Romano, no cristianismo primitivo, no catolicismo institucional Romano e nas igrejas da Reforma Protestante. Em resumo, é judaico-cristã. 

 Constituição de uma família de Roma, perante a lei civil.

Em termos antropológicos, um dos primeiros estudos sobre família foi realizado por Lewis Henry Morgan (1818-1881), no livro  Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Morgan também publicou Ancient Society (1877), texto que influenciou o trabalho de Frederich Engels intitulado A origem da família, da propriedade privada e do estado (1884). Esses estudos são considerados obsoletos porém foram pioneiros e Morgan analisou seis diferentes tipos diferenciados de configuração familiar agrupados em: havaiano, sudanês, iroquois, esquimó, crow e omaha.  Os estudos antropológicos também traçaram a linearidade familiar que pode ser estruturada em patrilinear, matrilinear (como os judeus) ou bilateral. 

Freud, Darwin, Max Weber e outros cientistas analisaram as formações familiares com enfoques psicanalíticos, sociológicos, biológicos, culturais ou econômicos. 

Para o ocidente, influenciado pela civilização europeia judaico-cristã, aristotélico-tomista, greco-romana e profundamente racionalista, a concepção de família foi, durante séculos, centrada na figura patriarcal. Desde Roma antiga a figura do pai da família mescla-se com a do proprietário dos escravos, senhor das mulheres e crianças, gestor do patrimônio que lhe pertence, juiz das punições e muitas vezes da vida ou da morte dos transgressores ligados à sua ampla célula familiar. 

 Estrutura patriarcal antiga, incluindo escravos e terras.

O império romano foi sucedido pelo sistema feudal europeu com suas famílias nobres e detentoras do poder civil e religioso, então centralizado na Igreja Católica. O catolicismo romano foi hegemônico até o aparecimento das igrejas reformadas protestantes que mantiveram a estrutura cristã institucionalizada no aparato jurídico-político econômico da nobreza e, posteriormente, da burguesia que se tornou detentora dos meios de produção. Essas práticas foram transplantadas para as colônias europeias e floresceram especialmente nas Américas, tanto nas antigas colônias de povoamento, ao norte, quanto nas colônias de exploração, ao sul. Na Ásia e Oriente Médio, esses modelos convivem cada vez mais com os sistemas filosóficos ou religiosos asiáticos e com as diversas faces do islamismo. Na África persistem vários modelos tribais específicos que são, aos poucos, substituídos pelas regras islâmicas ou cristãs. 

 Família tradicional branca e burguesa, início do século XX

Cada um desses modelos econômicos e culturais possui uma visão particular de família. No caso do ocidente atual, surgiram ao longo dos movimentos pelas liberdades civis (décadas de 1950 e 1960) uma complexa e diversificada movimentação que exigiu direitos iguais aos homens brancos para todas as mulheres, para as outras etnias e para as práticas sexuais diversas da monogamia heterossexual branca e cristã. Nos Estados Unidos a primazia do modelo idealizado WASP (white, anglo-saxon and protestant) foi duramente criticado e as liberdades individuais forjaram, ao longo dos séculos 19 e 20, avanços que foram recentemente (2015) coroados pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos ao aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O feminismo e as grandes movimentações dos negros já tinham conquistado direitos e respeitos aos seus grupos desde meados do século passado. Mas também houve a sobrevivência de grupos fundamentalistas cristãos em várias regiões, especialmente no interior da América do Norte. 

Na América Latina a histórica hegemonia da Igreja Católica foi contrabalançada pelo avanço das liberdades civis laicas, pluralistas e mais democráticas, apesar dos ciclos ditatoriais que diversas vezes assolaram o continente. 

A igreja católica na América Latina possui práticas avançadas caracterizada pela Teologia das Libertação e por uma consciência social mais profunda (no caso dos católicos mais progressistas).

No Brasil, mais recentemente, houve o surgimento das igrejas cristãs neopentecostais que diminuíram um pouco a hegemonia católica. As principais denominações são: 

Igreja Universal do Reino de Deus (fundada por Edir Macedo, 1977); 

Igreja Internacional da Graça de Deus (fundada por Romildo Ribeiro Soares após um desentendimento com Edir Macedo, 1980); 

Renascer em Cristo (fundada por Estevam Hernandes e Sônia Haddad Hernandes, 1986); 

Sara Nossa Terra (fundada por Robson Lemos Rodoalho, 1992); 

Igreja Mundial do Poder de Deus (fundada por Valdomiro Santiago de Oliveira, 1997); 

Bola de Neve Church (fundada pelo surfista Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, oriundo da igreja Renascer, em 2000). 

Essas igrejas são centradas no carisma do fundador e dos pastores, em um sofisticado esquema de marketing e estilo empreendedor, no apelo ao dízimo e às ofertas como fonte de prosperidade e benção (a chamada teologia da prosperidade), na leitura da Bíblia e nos cultos espetaculares, emocionais, histriônicos e envolventes. 

A igreja Católica (dividida em várias ordens religiosas, grupos diocesanos e laicos), as igrejas protestantes tradicionais (Luterana, Calvinista, Anglicana, Batista, Metodista...) e as igrejas protestantes modernas (Adventista, Pentecostal, Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor...) são organizações complexas e multifacetadas. Entre seus fiéis há vários estilos e tipos, desde os mais liberais até os mais conservadores ou reacionários. O problema é que esses se organizam em grupos de pressão e se unem às outras igrejas para defender o  que pensam ser a essência ou a verdade do cristianismo. Assim como os muçulmanos possuem os seus extremistas, os cristãos e judeus igualmente possuem seus fundamentalistas que pregam um discurso muito mais de ódio do que de amor, que é a verdadeira essência do cristianismo. 

O machismo, o racismo e os preconceitos andam juntos nesse contexto de intolerância, ressentimento, hipocrisia e ódio. Seus líderes fundamentam os argumentos em uma interpretação equivocada ou distorcida da Bíblia. Há uma clara presunção farisaica nessas posturas conservadoras. Os fariseus eram os judeus pretensamente mais justos e corretos, rígidos seguidores de leis e regras. Eram os mais criticados por jesus por serem injustos, casuístas, cínicos e impiedosos para com os outros segmentos sociais. 

A modernidade comporta vários tipos de família, inclusive de dois ou mais adultos que não tenham filhos.

O teólogo alemão Hans Kung expõe claramente essa intolerância religiosa que nasce no antigo judaísmo: “Eles (os fariseus) foram os inimigos mais encarniçados de Jesus. Para eles, e não para os grandes pecadores, se aplica a maioria dos discursos condenatórios dos Evangelhos. Não foram os homicidas, os ladrões, os rufiões, os adúlteros, mas os que cultivavam essa moral superior que finalmente assassinaram Jesus, convencidos que dessa forma ainda ofereciam um serviço à Deus. O espírito farisaico se perpetuou. Roma saiu vitoriosa das grandes confrontações militares. O zelotismo naufragou, os essênios foram  exterminados e os saduceus ficaram sem o templo e sem os serviços de culto. O fariseísmo, sem dúvida, sobreviveu à catástrofe do ano 70. Unicamente os escribas ficaram como guias do povo escravizado. Assim, do antigo farisaísmo surgiu o judaísmo normativo mais recente. ... O farisaísmo também persiste, e às vezes com maior intensidade, dentro do cristianismo, naturalmente em crassa contradição com Jesus. “ (Jesus., Hans Kung. Madrid: ed, Trotta, 2014, p. 71).

Nossas sociedades são separadas das igrejas. Somos nações laicas, pluralistas e democráticas, baseadas em constituições nacionais escritas com certa participação dos diversos segmentos sociais. O problema é que esses grupos evangélicos organizaram-se em partidos políticos que representam o que possuem de mais conservador e fundamentalista (em termos religiosos) e partiram para atacar a sociedade como um todo.

 Família branca brasileira e seus escravos, um modelo que marcou de maneira nefasta o imaginário de senhores e subalternos

Eles têm o direito, como qualquer outro grupo, de se organizar e buscar representatividade nas esferas jurídicas e políticas. Porém não tem o direito de querer impor aos outros as suas práticas, dogmas, preconceitos ou neuroses comportamentais. Esses grupos não podem ir contra avanços sociais, culturais, políticos e econômicos que são fruto de práticas democráticas e participativas. Não podem anular as conquistas por liberdades individuais e direitos humanos que venceram séculos de opressão contra as mulheres; não podem mais reprimir outras etnias e religiões; não podem mais massacrar outros estilos sexuais que fogem à ditadura cultural (não é natural e nem divina) e comportamental que se manteve até meados do século 20, alicerçada nos desejos e repressões das classes dominantes brancas, cristãs e heterossexuais, as novas faces da classe farisaica que perdurou ao longo dos milênios. As liberdades coletivas estão em perigo por causa de grupos totalitários, manipulados por líderes muitas vezes envolvidos em escândalos financeiros ou sexuais (justo eles que pregam o moralismo mais restrito, algo típico de fariseus). Suas massas são fanáticas e obcecadas por fórmulas simples de comportamento, regras e costumes, por disciplina e castigo contra os que não pensam da mesma forma. 

 Família

Essas são as origens perversas da intolerância e do ódio que surgiu no Brasil ao longo dos últimos anos. Esse ódio se alimenta da ignorância, da baixa escolaridade e dos níveis culturais pobres, ditados por uma mídia irresponsável. Essa mídia venal se interessa meramente em potencializar seus lucros não se importando com conteúdos e métodos destinados a suprir sua ganância de poder, dinheiro e fama. Escolas medíocres e igrejas ricas; cultura empobrecida e mídia dominante bilionária; práticas violentas e cinismo edulcorado; palavras de ordem totalitárias e pouquíssima reflexão crítica. Assim se constrói o deserto espinhoso e repleto de criaturas peçonhentas que povoam as nossas sociedades hodiernas, seja no mundo real ou no mundo virtual. 

 Família

Os ataques às famílias de diversas configurações, as mentiras e preconceitos contra opções sexuais que fogem à heterossexualidade pretensamente dominante e as repressões à outras religiões e culturas são a mesma face nefasta de uma tentativa ditatorial arcaica de controlar a sociedade visando mais poder, lucros e dominação cultural. O que oferecem é uma fórmula gasta e parcial de um pretensamente único modelo familiar e social, um modelo que foi denunciado por vários cientistas sociais e artistas, basta lembrar as crônicas de Nelson Rodrigues onde são mostradas algumas das características atávicas e paradoxais da família tradicional brasileira ( e universal). 

Família é algo bom quando é livremente escolhida, criada, educada e preparada para um mundo vasto e alucinado. Família é algo mais que um homem, uma mulher e uma (ou várias) criança. Família tem muito mais a ver com amor do que com regras, preceitos e exclusões.  

Família

A santidade das diversas configurações familiares não está no discurso interesseiro dessas igrejas e no sua prática dogmática e obscura. Nossa proteção familiar está no exercício cotidiano do amor, compreensão e tolerância, assim como na luta corajosa e generosa pelas liberdades individuais e democráticas. Qualquer instituição, empresa, igreja, grupo ou família que compartilhar das visões de liberdade e generosidade são bem-vindas para compartilhar das graças que o ser humanos pode proporcionar aos seus semelhantes. 

 O amor não tem raça, nacionalidade, religião, preferência sexual ou ...

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