No dia internacional do turismo, relembro o sentido da viagem como uma busca de si mesmo, da luz que ilumina nossa existência.
"O viajante é o mercador da luz". Ouvi essa frase, pela primeira
vez, de Félix Tomillo Nogueira, em Valladolid (Espanha). Há no pensamento
antigo e contemporâneo várias referências sobre a matéria ser luz congelada,
por ser originária da fusão nuclear das estrelas. Os seres vivos, portanto, seriam
igualmente luz congelada. Filhos das estrelas, subprodutos da poeira cósmica
congelada, viajantes estelares. Belos e místicos rótulos para vidas em meio à
vastidão de um universo incognoscível.
A primeira religião monoteísta do
mundo, o judaísmo, celebra a luz no primeiro parágrafo de seu primeiro livro:
“Quando Deus iniciou a criação do céu e da terra, a terra era deserta e vazia,
e havia treva na superfície do abismo; o sopro de Deus pairava na superfície
das águas, e Deus disse: ‘Que a luz seja!’ E a luz veio a ser. Deus viu que a
luz era boa. Deus separou a luz da treva. Deus chamou a luz de ‘dia’ e à treva
chamou ‘noite”. (Gênesis, 1, 1-5). Nas bases do cristianismo, o solene prólogo
teológico do Evangelho de João igualmente inicia com a celebração iluminada:
“No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no início voltado para Deus. Tudo foi feito por meio dele; e sem ele
nada se fez do que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens,
e a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam.” (Jo, 1, 1-5).
O ser humano deseja e luta pela
luz. Essas aventuras e batalhas são comuns nos mitos, nas religiões e na
história. A luz representa sabedoria, conhecimento, a capacidade intelectual e
espiritual ante um mundo brutal. As trevas são o caos, o mal, a ignorância.
Portanto, a escuridão perde suas propriedades nocivas ao desaparecer ante a
luz, aí reside o fundamento da iluminação.
O escritor Amín Maalouf, em Los jardines de luz, descreve a vida de
Mani, nascido em 216 da era cristã e fundador de uma filosofia de vida
posteriormente deturpada e denominada maniqueísmo. Mani fala da batalha entre
as trevas e a luz e que cabe ao ser humano fazer com que as trevas retrocedam e
facilite o brilho da luz divina (Maalouf, 2010, p. 199). Ele conta que “no início do universo existiam dois mundos,
separados um do outro: o mundo da Luz e o das Trevas. Nos Jardins de Luz se
encontravam todas as coisas desejáveis, no das trevas residia o desejo, um
intenso desejo, imperioso. De repente, na fronteira dos dois mundos, se
produziu um choque, o mais violento, o mais aterrador que o universo conheceu.
As partículas de luz se mesclaram com as partículas de trevas de mil formas
diferentes e foi assim que apareceram todas as criaturas, os corpos celestes e
as águas, a natureza e o homem. Em todos os seres como em todas as coisas se
tocam e se mesclam Luz e Trevas. A Luz se nutre de beleza e conhecimento.”
(Maalouf, 2010, p. 121).
Essa articulação entre a luz e a
beleza permeou a arte durante séculos. Para citar um exemplo recente, o espanhol
Joaquin Sorolla (1863-1923), ficou conhecido como o pintor da luz por retratar pessoas e paisagens sob a luz do mar
Mediterrâneo, sendo pioneiro em mostrar o recente costume das pessoas se
banharem nas águas quentes do mar ao sul da Europa. A alegria, a sensualidade e
os reflexos, nas águas e areias ou na atmosfera cálida, possuem uma formosa
iridescência, qualidade justamente inerente à luz.
O norte-americano Thomas Kinkade
(1858-2012), também é conhecido como pintor
da luz, por retratar paisagens bucólicas, idílicas e com um realismo
popular, ou seja, na esfera do kitsch.
Suas obras são conhecidas mais nos Estados Unidos, onde têm um apelo de massa e
popular.
O artista mais conhecido como pintor da luz, é o impressionista inglês
Joseph Mallord William Turner (1775-1851). Suas paisagens, naturais ou urbanas,
exalam luminosidade, até mesmo em cenas noturnas, onde a lua ou as chamas de
fogueiras dominam espetacularmente o quadro.
Outro artista clássico das luzes
– e das trevas – foi Michelângelo Caravaggio (1571-1610), o grande pintor das
formas sensuais e iluminadas por focos de luz e porções de sombras, em uma teia
estética que remete às teorias de Maní, sobre a inseparabilidade entre luz e
sombras.
Roger Bacon (1220-1292), foi um
dos filósofos a elaborar teorias sobre a primazia da luz para a inteligência e
a sensibilidade humanas. Bacon foi um dos primeiros professores de Oxford. Ele
era “notável não tanto por suas
realizações quanto por sua percepção das possibilidades. Ele acreditava que
poderia e deveria haver uma ciência unificada, baseada na matemática, mas que
fizesse uso da observação e do experimento, bem como do raciocínio abstrato.”
(Magee, 1999, p. 58). Entre essas possibilidades estava a de comunicação entre
todos os seres humanos, viabilizada perlo fato de que todos receberiam seu
conhecimento a partir de um único foco de luz. No contexto de um mundo cristão,
Bacon entendia que o próprio Deus, sem intermediários, daria luz à alma de cada
ser humano através da Palavra. A criação do Universo seria a iluminação
primordial, absoluta e objetiva. Portanto, levar conhecimento é uma maneira de
levar a luz aos outros que igualmente precisam dos alimentos do espírito.
Um texto recente de Ricardo
Menéndez Salmón (La luz es más antigua
que el amor), explicita a primazia da luz ante tudo, inclusive o amor, pois
ela o antecedeu na criação. A luz é anterior ao humano, e apenas onde existem
humanos pode existir o amor. A luz surgiu antes da inteligência e compreensão
dos humanos, por isso é que há tanto interesse em relação à luz que perpassa
nossas vidas. “A vida é uma lâmpada que os homens cedem uns aos outros: os pais aos
filhos, os velhos aos jovens, os sábios aos ignorantes.” (Salmón, 2010, p.
169). A luz se doa e se transporta, uma lâmpada serve tanto para uma só pessoa
como para dezenas, pois a luz não tem restrições sociais.
Portanto, ao viajar para ver o
mundo e suas belezas, o viajante transporta um pouco dos conhecimentos de sua
terra e volta com outros, tendo caminhado e experimentado coisas novas,
enriquecido sua existência e trocado luzes com outros povos e culturas. O
viajante é um mercador da luz. Caminhando e experimentando ele adquire suas
próprias luzes nas trocas que realiza ao longo da jornada.