Texto: Luiz Gonzaga Godoi Trigo
As primitivas formações
familiares eram coletivas, tribais. Grupos ou clãs vagavam pela natureza em
busca de alimentos, água e proteção contra o terror noturno povoado de
predadores, contra outros humanos que disputavam seus territórios ou contra as
terríveis forças naturais das secas, enchentes ou nevascas em uma terra plena
de paisagens hostis aos humanos.
Ao longo da história
formaram-se estruturas sociais mais ou menos estáveis para proteger as crianças
e os velhos, as mulheres e os doentes, para garantir direitos sobre
propriedade, hierarquia social, para abrigar as crianças e o imaginário dos
diversos grupos que se espalhavam e se organizavam pelo planeta.
Família nativa norte-americana, século XIX
Os estudos
antropológicos mostram diversos tipos de agrupamento familiar ao longo da história,
das culturas e civilizações. Há famílias monogâmicas, poligâmicas (famílias
onde o homem possui várias mulheres ou vice-versa), casais contemporâneos com
relações abertas, famílias monoparentais (com apenas um pai ou uma mãe, em
geral fruto de divórcio, morte do cônjuge ou simplesmente “produção
independente”). Há ainda adultos de vários sexos que se unem por diversos
motivos. Esses grupos recebem a denominação de famílias e organizam-se em torno
de motivos religiosos (comunidades religiosas), corporativos (empresas
altamente institucionalizadas), criminosos (as máfias) ou sexuais.
A atual concepção ocidental
de família tem sua origem no judaísmo antigo, nas antigas leis do Império
Romano, no cristianismo primitivo, no catolicismo institucional Romano e nas
igrejas da Reforma Protestante. Em resumo, é judaico-cristã.
Constituição de uma família de Roma, perante a lei civil.
Em termos
antropológicos, um dos primeiros estudos sobre família foi realizado por Lewis
Henry Morgan (1818-1881), no livro Systems of
Consanguinity and Affinity of the Human Family. Morgan também
publicou Ancient Society (1877),
texto que influenciou o trabalho de Frederich Engels intitulado A origem da família, da propriedade privada
e do estado (1884). Esses estudos são considerados obsoletos porém foram
pioneiros e Morgan analisou seis diferentes tipos diferenciados de configuração
familiar agrupados em: havaiano, sudanês, iroquois, esquimó, crow e omaha. Os estudos antropológicos também traçaram a
linearidade familiar que pode ser estruturada em patrilinear, matrilinear (como
os judeus) ou bilateral.
Freud, Darwin, Max
Weber e outros cientistas analisaram as formações familiares com enfoques
psicanalíticos, sociológicos, biológicos, culturais ou econômicos.
Para o ocidente,
influenciado pela civilização europeia judaico-cristã, aristotélico-tomista,
greco-romana e profundamente racionalista, a concepção de família foi, durante
séculos, centrada na figura patriarcal. Desde Roma antiga a figura do pai da
família mescla-se com a do proprietário dos escravos, senhor das mulheres e
crianças, gestor do patrimônio que lhe pertence, juiz das punições e muitas
vezes da vida ou da morte dos transgressores ligados à sua ampla célula
familiar.
Estrutura patriarcal antiga, incluindo escravos e terras.
O império romano foi
sucedido pelo sistema feudal europeu com suas famílias nobres e detentoras do
poder civil e religioso, então centralizado na Igreja Católica. O catolicismo
romano foi hegemônico até o aparecimento das igrejas reformadas protestantes que
mantiveram a estrutura cristã institucionalizada no aparato jurídico-político
econômico da nobreza e, posteriormente, da burguesia que se tornou detentora
dos meios de produção. Essas práticas foram transplantadas para as colônias
europeias e floresceram especialmente nas Américas, tanto nas antigas colônias
de povoamento, ao norte, quanto nas colônias de exploração, ao sul. Na Ásia e
Oriente Médio, esses modelos convivem cada vez mais com os sistemas filosóficos
ou religiosos asiáticos e com as diversas faces do islamismo. Na África persistem
vários modelos tribais específicos que são, aos poucos, substituídos pelas
regras islâmicas ou cristãs.
Família tradicional branca e burguesa, início do século XX
Cada um desses modelos
econômicos e culturais possui uma visão particular de família. No caso do
ocidente atual, surgiram ao longo dos movimentos pelas liberdades civis (décadas
de 1950 e 1960) uma complexa e diversificada movimentação que exigiu direitos
iguais aos homens brancos para todas as mulheres, para as outras etnias e para
as práticas sexuais diversas da monogamia heterossexual branca e cristã. Nos
Estados Unidos a primazia do modelo idealizado WASP (white, anglo-saxon and protestant) foi duramente criticado e as
liberdades individuais forjaram, ao longo dos séculos 19 e 20, avanços que
foram recentemente (2015) coroados pela decisão da Suprema Corte dos Estados
Unidos ao aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O feminismo e as
grandes movimentações dos negros já tinham conquistado direitos e respeitos aos
seus grupos desde meados do século passado. Mas também houve a sobrevivência de
grupos fundamentalistas cristãos em várias regiões, especialmente no interior
da América do Norte.
Na América Latina a
histórica hegemonia da Igreja Católica foi contrabalançada pelo avanço das
liberdades civis laicas, pluralistas e mais democráticas, apesar dos ciclos
ditatoriais que diversas vezes assolaram o continente.
A igreja católica na América Latina possui práticas avançadas caracterizada pela Teologia das Libertação e por uma consciência social mais profunda (no caso dos católicos mais progressistas).
No Brasil, mais
recentemente, houve o surgimento das igrejas cristãs neopentecostais que
diminuíram um pouco a hegemonia católica. As principais denominações são:
Igreja
Universal do Reino de Deus (fundada por Edir Macedo, 1977);
Igreja
Internacional da Graça de Deus (fundada por Romildo
Ribeiro Soares após um desentendimento com Edir Macedo, 1980);
Renascer
em Cristo (fundada por Estevam Hernandes e Sônia Haddad
Hernandes, 1986);
Sara
Nossa Terra (fundada por Robson Lemos Rodoalho, 1992);
Igreja
Mundial do Poder de Deus (fundada por Valdomiro Santiago de
Oliveira, 1997);
Bola
de Neve Church (fundada pelo surfista Rinaldo Luiz de
Seixas Pereira, oriundo da igreja Renascer, em 2000).
Essas igrejas são
centradas no carisma do fundador e dos pastores, em um sofisticado esquema de
marketing e estilo empreendedor, no apelo ao dízimo e às ofertas como fonte de
prosperidade e benção (a chamada teologia da prosperidade), na leitura da
Bíblia e nos cultos espetaculares, emocionais, histriônicos e envolventes.
A igreja Católica
(dividida em várias ordens religiosas, grupos diocesanos e laicos), as igrejas
protestantes tradicionais (Luterana, Calvinista, Anglicana, Batista, Metodista...)
e as igrejas protestantes modernas (Adventista, Pentecostal, Assembleia de
Deus, Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor...) são
organizações complexas e multifacetadas. Entre seus fiéis há vários estilos e
tipos, desde os mais liberais até os mais conservadores ou reacionários. O
problema é que esses se organizam em grupos de pressão e se unem às outras
igrejas para defender o que pensam ser a
essência ou a verdade do cristianismo. Assim como os muçulmanos possuem os seus
extremistas, os cristãos e judeus igualmente possuem seus fundamentalistas que
pregam um discurso muito mais de ódio do que de amor, que é a verdadeira essência
do cristianismo.
O machismo, o racismo e
os preconceitos andam juntos nesse contexto de intolerância, ressentimento,
hipocrisia e ódio. Seus líderes fundamentam os argumentos em uma interpretação
equivocada ou distorcida da Bíblia. Há uma clara presunção farisaica nessas
posturas conservadoras. Os fariseus eram os judeus pretensamente mais justos e
corretos, rígidos seguidores de leis e regras. Eram os mais criticados por
jesus por serem injustos, casuístas, cínicos e impiedosos para com os outros
segmentos sociais.
A modernidade comporta vários tipos de família, inclusive de dois ou mais adultos que não tenham filhos.
O teólogo alemão Hans Kung expõe claramente essa
intolerância religiosa que nasce no antigo judaísmo: “Eles (os fariseus) foram os inimigos mais encarniçados de Jesus. Para
eles, e não para os grandes pecadores, se aplica a maioria dos discursos
condenatórios dos Evangelhos. Não foram os homicidas, os ladrões, os rufiões, os
adúlteros, mas os que cultivavam essa moral superior que finalmente
assassinaram Jesus, convencidos que dessa forma ainda ofereciam um serviço à
Deus. O espírito farisaico se perpetuou. Roma saiu vitoriosa das grandes
confrontações militares. O zelotismo naufragou, os essênios foram exterminados e os saduceus ficaram sem o templo
e sem os serviços de culto. O fariseísmo, sem dúvida, sobreviveu à catástrofe
do ano 70. Unicamente os escribas ficaram como guias do povo escravizado.
Assim, do antigo farisaísmo surgiu o judaísmo normativo mais recente. ... O
farisaísmo também persiste, e às vezes com maior intensidade, dentro do
cristianismo, naturalmente em crassa contradição com Jesus. “ (Jesus., Hans Kung. Madrid: ed, Trotta,
2014, p. 71).
Nossas sociedades são
separadas das igrejas. Somos nações laicas, pluralistas e democráticas,
baseadas em constituições nacionais escritas com certa participação dos diversos
segmentos sociais. O problema é que esses grupos evangélicos organizaram-se em
partidos políticos que representam o que possuem de mais conservador e
fundamentalista (em termos religiosos) e partiram para atacar a sociedade como
um todo.
Família branca brasileira e seus escravos, um modelo que marcou de maneira nefasta o imaginário de senhores e subalternos
Eles têm o direito, como
qualquer outro grupo, de se organizar e buscar representatividade nas esferas
jurídicas e políticas. Porém não tem o direito de querer impor aos outros as
suas práticas, dogmas, preconceitos ou neuroses comportamentais. Esses grupos
não podem ir contra avanços sociais, culturais, políticos e econômicos que são
fruto de práticas democráticas e participativas. Não podem anular as conquistas
por liberdades individuais e direitos humanos que venceram séculos de opressão
contra as mulheres; não podem mais reprimir outras etnias e religiões; não
podem mais massacrar outros estilos sexuais que fogem à ditadura cultural (não
é natural e nem divina) e comportamental que se manteve até meados do século
20, alicerçada nos desejos e repressões das classes dominantes brancas, cristãs
e heterossexuais, as novas faces da classe farisaica que perdurou ao longo dos
milênios. As liberdades coletivas estão em perigo por causa de grupos totalitários,
manipulados por líderes muitas vezes envolvidos em escândalos financeiros ou
sexuais (justo eles que pregam o moralismo mais restrito, algo típico de
fariseus). Suas massas são fanáticas e obcecadas por fórmulas simples de
comportamento, regras e costumes, por disciplina e castigo contra os que não
pensam da mesma forma.
Família
Essas são as origens
perversas da intolerância e do ódio que surgiu no Brasil ao longo dos últimos
anos. Esse ódio se alimenta da ignorância, da baixa escolaridade e dos níveis
culturais pobres, ditados por uma mídia irresponsável. Essa mídia venal se interessa
meramente em potencializar seus lucros não se importando com conteúdos e
métodos destinados a suprir sua ganância de poder, dinheiro e fama. Escolas
medíocres e igrejas ricas; cultura empobrecida e mídia dominante bilionária;
práticas violentas e cinismo edulcorado; palavras de ordem totalitárias e pouquíssima
reflexão crítica. Assim se constrói o deserto espinhoso e repleto de criaturas
peçonhentas que povoam as nossas sociedades hodiernas, seja no mundo real ou no
mundo virtual.
Família
Os ataques às famílias
de diversas configurações, as mentiras e preconceitos contra opções sexuais que
fogem à heterossexualidade pretensamente dominante e as repressões à outras
religiões e culturas são a mesma face nefasta de uma tentativa ditatorial
arcaica de controlar a sociedade visando mais poder, lucros e dominação
cultural. O que oferecem é uma fórmula gasta e parcial de um pretensamente único modelo familiar e
social, um modelo que foi denunciado por vários cientistas sociais
e artistas, basta lembrar as crônicas de Nelson Rodrigues onde são mostradas algumas
das características atávicas e paradoxais da família tradicional brasileira ( e
universal).
Família é algo bom quando é livremente escolhida, criada, educada e preparada para um mundo vasto e alucinado. Família é algo mais que um homem, uma mulher e uma (ou várias) criança. Família tem muito mais a ver com amor do que com regras, preceitos e exclusões.
Família
A santidade das diversas
configurações familiares não está no discurso interesseiro dessas igrejas e no sua
prática dogmática e obscura. Nossa proteção familiar está no exercício cotidiano
do amor, compreensão e tolerância, assim como na luta corajosa e generosa pelas
liberdades individuais e democráticas. Qualquer instituição, empresa, igreja, grupo ou família que compartilhar das visões de liberdade e generosidade são bem-vindas para compartilhar das graças que o ser humanos pode proporcionar aos seus semelhantes.
O amor não tem raça, nacionalidade, religião, preferência sexual ou ...