Dia 1 de novembro é dia
de Todos os Santos 2 de novembro é o dia dos mortos. Somos todos santos, de certo
modo, e estaremos todos mortos um dia, de diversas maneiras. Porém, em nossa
cultura – muito diferente da mexicana, por exemplo - não falamos da morte.
Disfarçamos, ignoramos ou simplesmente ironizamos o derradeiro ato de nossa
existência. Às vezes, vivemos como se fôssemos eternos; gastamos o tempo como
se ele fosse inacabável; percorremos nossos caminhos como se eles fossem infinitos.
Há umas quatrocentas
referências sobre “morte” ou “morrer” na Bíblia (umas duzentas sobre a “vida”;
cerca de uma centena sobre “ressurreição”). A literatura contemporânea mais
sofisticada se debruça sobre a morte, como Christopher Hitchens (Mortalidade) e Philip Roth (O Patrimônio e Homem comum), para citar uns poucos e bons.
O antigo deus da morte é Tânatos. Segundo a
wikipedia, na mitologia grega, Tânato, também referido
como Thanatos, é a personificação da morte, enquanto Hades reinava sobre os
mortos no mundo inferior. Seu nome é transliterado em latim como Thanatus e seu
equivalente na mitologia romana é Mors ou Letus. É conhecido por ter o coração de ferro e as entranhas
de bronze.
Thanatos é filho, sem pai, de Nix,
a noite, filha do Caos; ou, segundo outras versões, filho de Nix
e Érebo, a noite eterna do Hades. Thanatos é
a personificação da morte, enquanto Hípnos é a personificação do sono. Os
irmãos gêmeos habitavam os Campos Elíseos (País de Hades, o lugar do mundo
subterrâneo).
Para nossa cultura de
massa contemporânea, a morte tem a face de vampiros, zumbis ou múmias
aterrorizantes. Talvez reflexos de nossos medos mais rofundos e incertezas
perante o futuro...
Mas um dos filósofos
contemporâneos que mais refletiu sobre a morte foi Jean-Paul Sartre. Reproduzo
abaixo trechos do meu livro Existencialismo,
um enfoque cultural (Curitiba: IBPEX, 2011), exatamente sobre a questão da
mortalidade:
O
homem, no tempo que passa, se consome, veio do nada e retornará ao nada. O que esse
homem possui, de seu? Suas coisas, seu próximo e a sua morte. A morte é o
término da vida humana e é absurda. Somos uns condenados à morte preparando-nos
para os últimos instantes e tentando fazer um bom papel no hipotético tempo que
nos resta. De repente algo acontece – um desastre, uma doença – e morremos. “A morte não é nunca o que dá à vida o seu
sentido: é, ao contrário, o que lhe tira por princípio toda significação. Se
temos que morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem
nenhuma solução e porque a significação mesma dos problemas permanece
indeterminada.” (Sartre, El ser y el nada, 1976, p. 659). Não há
saídas. Estamos “entre quatro paredes”
(título de uma peça de Sartre) e nem o suicídio é uma opção, já que também é um
absurdo. Esse foi um dos motivos por que o pensamento de Sartre foi denominado
“filosofia do desespero” pelos seus críticos, especialmente os marxistas e os
religiosos.
“Não posso nem descobrir minha morte, nem
esperá-la, nem adotar uma atitude contra ela, pois minha morte é o que se
revela como incognoscível, o que desarma todas as esperas, o que se esvai em
todas as atitudes, e particularmente nas que se adotaram para com ela. A morte é um puro fato, como o nascimento;
nos vem de fora e nos transforma de fora. No fundo, não se distingue de modo
algum do nascimento, e a esta identidade de nascimento e morte denominamos
faticidade.” (Sartre, El ser y el
nada, 1976, p. 666). Se a morte e um absurdo, e por sua vez não se
distingue do nascimento como fato, o nascimento também é absurdo. Portanto se a
vida é a existência compreendida entre o nascimento e a morte, dois fatos
absurdos, ela também é absurda. Mas Sartre reserva um lugar para o humanismo em
sua obra e para a liberdade, o grande trunfo humano e razão de nossas escolhas.
A vida pode ser absurda, mas merece ser vivida. Algo do tipo “se a vida te deu
limões, faça uma limonada”. Mas é preciso que as pessoas façam suas escolhas e
como essas escolhas são finitas, temos que pensar muito bem antes de escolher.
A
companheira de Sartre, Simone de Beauvoir, escreveu um romance profundo sobre
essa temática, intitulado Todos os homens
são mortais. Nesse romance, o personagem, Conde Fosca, vive desde o século
XIII graças a um elixir de imortalidade e tenta, no decorrer de sua longa e
imortal existência, realizar inúmeros projetos e atividades: levar sua aldeia
(Carmona, na Itália) à supremacia na região; construir meticulosamente o futuro
de seu filho ou de suas mulheres; estruturar um ambicioso plano de colonização
da América espanhola, sendo assessor dos reis da época e outros projetos para
os quais ele tem todo o tempo do mundo. Ele fracassa em todos os planos porque
é limitado e não controla as variáveis que afetam a ele e aos seus
companheiros. O pior é que as pessoas que ele ama envelhecem e morrem. Apenas
ele e um ratinho, que serviu de experiência para o elixir da imortalidade, são
anômalos e únicos e sobrevivem aos séculos isolados em sua angústia e solidão.
Sua
angústia é similar à dos vampiros de Anne Rice, representados no filme Entrevista com o Vampiro (Direção de
Neil Jordan, 1994) e do herói do filme Highlander
(Direção de Russell Mulcahy, 1986). Os vampiros se entediam com a longevidade
de sua vida anormal, tendo por prazer somente sorver o sangue de suas vítimas.
O herói de Highlander, assim como o
Conde Fosca, frustra-se com a impossibilidade do amor já que suas mulheres,
filhos e amigos envelhecem e morrem, enquanto eles continuam com a mesma idade.
Desencantado com seu prêmio, na verdade uma maldição, o Conde Fosca tenta o
suicídio, mas seu corpo se regenera a cada tentativa. Ele começa então a viver
à margem dos dias e das estações que se repetem indiferentes aos homens que
passam, efêmeros como as flores de um dia dos desertos. Não dorme porque tem
pesadelos. “Sonho que não há mais homens.
Todos estão mortos. A terra é branca. Ainda há a lua no céu e ela ilumina uma
terra toda branca. Estou só, com o camundongo.” (Beauvoir, Todos os homens são mortais, 1983, p.
392)
A
morte não é então o fundamento da finitude do ser humano, Sartre deixa claro no
romance Os dados estão lançados e na
peça Entre quatro paredes. Mesmo
depois de mortos os personagens continuam finitos, a única realidade possível
após a morte, em uma hipotética sobrevivência, seria a realidade da condição
humana, limitada e impotente. A morte não é estrutura ontológica do ser, não há
um lugar para ela no ser-para-si pois nossos projetos são independentes de
nossa morte. Somos livres mortais, em uma existência absurda. Quanto à idéia de Deus, “ela é contraditória e nos perdemos em vão: o homem é uma paixão
inútil.” (Sartre, El ser y el nada,
1976, p. 747).
Para
terminar essa breve digressão sobre nossas mortes, deixo alguns versos do poeta
persa Omar Khaiyam, que viveu há mil anos e possuía um existencialismo materialista
muito próprio:
Rubaiyat
5
Busca
a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha
um grande copo cheio de vinho,
senta-te
ao luar, e pensa:
Talvez
amanhã a lua me procure em vão.
Rubaiyat 27
Olha,
um dia a alma deixará o teu corpo
e
ficarás por trás do véu, entre o Universo
e
o desconhecido. Enquanto não chega a hora,
procura
ser feliz. Para onde irás depois?
Luiz
Gonzaga Godoi Trigo, 2013
2 comentários:
Assunto considerado tabu, de caráter cruel e místico, texto redigido com argúcia entre o lúdico e o racional, coisa própria de reflexões embebidas no saberes, advindos dos lazeres da contemplação, acredito. Valeu Mestre!
Trigo. Adorei isso! parabens!
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