sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Dia dos mortos, dia de todos nós



Dia 1 de novembro é dia de Todos os Santos 2 de novembro é o dia dos mortos. Somos todos santos, de certo modo, e estaremos todos mortos um dia, de diversas maneiras. Porém, em nossa cultura – muito diferente da mexicana, por exemplo - não falamos da morte. Disfarçamos, ignoramos ou simplesmente ironizamos o derradeiro ato de nossa existência. Às vezes, vivemos como se fôssemos eternos; gastamos o tempo como se ele fosse inacabável; percorremos nossos caminhos como se eles fossem infinitos.  


Há umas quatrocentas referências sobre “morte” ou “morrer” na Bíblia (umas duzentas sobre a “vida”; cerca de uma centena sobre “ressurreição”). A literatura contemporânea mais sofisticada se debruça sobre a morte, como Christopher Hitchens (Mortalidade) e Philip Roth (O Patrimônio e Homem comum), para citar uns poucos e bons. 



O antigo deus da morte é Tânatos. Segundo a wikipedia, na mitologia grega, Tânato, também referido como Thanatos, é a personificação da morte, enquanto Hades reinava sobre os mortos no mundo inferior. Seu nome é transliterado em latim como Thanatus e seu equivalente na mitologia romana é Mors ou Letus. É conhecido por ter o coração de ferro e as entranhas de bronze.

Thanatos é filho, sem pai, de Nix, a noite, filha do Caos; ou, segundo outras versões, filho de Nix e Érebo, a noite eterna do Hades. Thanatos é a personificação da morte, enquanto Hípnos é a personificação do sono. Os irmãos gêmeos habitavam os Campos Elíseos (País de Hades, o lugar do mundo subterrâneo).



Para nossa cultura de massa contemporânea, a morte tem a face de vampiros, zumbis ou múmias aterrorizantes. Talvez reflexos de nossos medos mais rofundos e incertezas perante o futuro...

Mas um dos filósofos contemporâneos que mais refletiu sobre a morte foi Jean-Paul Sartre. Reproduzo abaixo trechos do meu livro Existencialismo, um enfoque cultural (Curitiba: IBPEX, 2011), exatamente sobre a questão da mortalidade:
O homem, no tempo que passa, se consome, veio do nada e retornará ao nada. O que esse homem possui, de seu? Suas coisas, seu próximo e a sua morte. A morte é o término da vida humana e é absurda. Somos uns condenados à morte preparando-nos para os últimos instantes e tentando fazer um bom papel no hipotético tempo que nos resta. De repente algo acontece – um desastre, uma doença – e morremos. “A morte não é nunca o que dá à vida o seu sentido: é, ao contrário, o que lhe tira por princípio toda significação. Se temos que morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem nenhuma solução e porque a significação mesma dos problemas permanece indeterminada.”  (Sartre, El ser y el nada, 1976, p. 659). Não há saídas. Estamos “entre quatro paredes” (título de uma peça de Sartre) e nem o suicídio é uma opção, já que também é um absurdo. Esse foi um dos motivos por que o pensamento de Sartre foi denominado “filosofia do desespero” pelos seus críticos, especialmente os marxistas e os religiosos.
Não posso nem descobrir minha morte, nem esperá-la, nem adotar uma atitude contra ela, pois minha morte é o que se revela como incognoscível, o que desarma todas as esperas, o que se esvai em todas as atitudes, e particularmente nas que se adotaram para com ela. A morte é um puro fato, como o nascimento; nos vem de fora e nos transforma de fora. No fundo, não se distingue de modo algum do nascimento, e a esta identidade de nascimento e morte denominamos faticidade.” (Sartre, El ser y el nada, 1976, p. 666). Se a morte e um absurdo, e por sua vez não se distingue do nascimento como fato, o nascimento também é absurdo. Portanto se a vida é a existência compreendida entre o nascimento e a morte, dois fatos absurdos, ela também é absurda. Mas Sartre reserva um lugar para o humanismo em sua obra e para a liberdade, o grande trunfo humano e razão de nossas escolhas. A vida pode ser absurda, mas merece ser vivida. Algo do tipo “se a vida te deu limões, faça uma limonada”. Mas é preciso que as pessoas façam suas escolhas e como essas escolhas são finitas, temos que pensar muito bem antes de escolher. 

A morte é uma limitação ao ser humano, mas ela é diferente do que se entende por finitude. A realidade humana seguiria sendo finita, limitada, ainda que o homem fosse imortal, porque, ao se fazer humana faz-se finita. O homem é ais que mortal, é impotente ma extensão de sua existência, limitado e finito. Ser finito é projetar-se em apenas uma possibilidade de ser, excluindo todas as outras. O ato mesmo da liberdade é a criação da finitude. Se eu me faço, me faço finito e, por esse fato, minha vida será única. Tanto o imortal mitológico como os homens mortais nascem múltiplos e se fazem unos na existência.
A companheira de Sartre, Simone de Beauvoir, escreveu um romance profundo sobre essa temática, intitulado Todos os homens são mortais. Nesse romance, o personagem, Conde Fosca, vive desde o século XIII graças a um elixir de imortalidade e tenta, no decorrer de sua longa e imortal existência, realizar inúmeros projetos e atividades: levar sua aldeia (Carmona, na Itália) à supremacia na região; construir meticulosamente o futuro de seu filho ou de suas mulheres; estruturar um ambicioso plano de colonização da América espanhola, sendo assessor dos reis da época e outros projetos para os quais ele tem todo o tempo do mundo. Ele fracassa em todos os planos porque é limitado e não controla as variáveis que afetam a ele e aos seus companheiros. O pior é que as pessoas que ele ama envelhecem e morrem. Apenas ele e um ratinho, que serviu de experiência para o elixir da imortalidade, são anômalos e únicos e sobrevivem aos séculos isolados em sua angústia e solidão.
Sua angústia é similar à dos vampiros de Anne Rice, representados no filme Entrevista com o Vampiro (Direção de Neil Jordan, 1994) e do herói do filme Highlander (Direção de Russell Mulcahy, 1986). Os vampiros se entediam com a longevidade de sua vida anormal, tendo por prazer somente sorver o sangue de suas vítimas. O herói de Highlander, assim como o Conde Fosca, frustra-se com a impossibilidade do amor já que suas mulheres, filhos e amigos envelhecem e morrem, enquanto eles continuam com a mesma idade. Desencantado com seu prêmio, na verdade uma maldição, o Conde Fosca tenta o suicídio, mas seu corpo se regenera a cada tentativa. Ele começa então a viver à margem dos dias e das estações que se repetem indiferentes aos homens que passam, efêmeros como as flores de um dia dos desertos. Não dorme porque tem pesadelos. “Sonho que não há mais homens. Todos estão mortos. A terra é branca. Ainda há a lua no céu e ela ilumina uma terra toda branca. Estou só, com o camundongo.” (Beauvoir, Todos os homens são mortais, 1983, p. 392)
A morte não é então o fundamento da finitude do ser humano, Sartre deixa claro no romance Os dados estão lançados e na peça Entre quatro paredes. Mesmo depois de mortos os personagens continuam finitos, a única realidade possível após a morte, em uma hipotética sobrevivência, seria a realidade da condição humana, limitada e impotente. A morte não é estrutura ontológica do ser, não há um lugar para ela no ser-para-si pois nossos projetos são independentes de nossa morte. Somos livres mortais, em uma existência absurda.  Quanto à idéia de Deus, “ela é contraditória e nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil.” (Sartre, El ser y el nada, 1976, p. 747).


Para terminar essa breve digressão sobre nossas mortes, deixo alguns versos do poeta persa Omar Khaiyam, que viveu há mil anos e possuía um existencialismo materialista muito próprio:

Rubaiyat 5
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão.

 Rubaiyat 27
Olha, um dia a alma deixará o teu corpo
e ficarás por trás do véu, entre o Universo
e o desconhecido. Enquanto não chega a hora,
procura ser feliz. Para onde irás depois?

 
Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 2013

2 comentários:

Loco Sapiens disse...

Assunto considerado tabu, de caráter cruel e místico, texto redigido com argúcia entre o lúdico e o racional, coisa própria de reflexões embebidas no saberes, advindos dos lazeres da contemplação, acredito. Valeu Mestre!

cavenaghi disse...

Trigo. Adorei isso! parabens!