Vivemos simultaneamente uma distopia, um tipo de experiência-limite e uma instabilidade política e social.
A distopia veio na forma de uma pandemia não convencional. Não teremos lobisomens, vampiros, zumbis ou milhões de mortos em uma Terra devastada, mas um surto insidioso que mata pequena parte da população e deixa a outra parte com medo de ser "a próxima vítima". Uma roleta-russa perversa o suficiente para congelar a movimentação das pessoas nas áreas urbanas do planeta. Isso para os que entenderam a gravidade peculiar da ameaça (apesar de poucas mortes percentuais, é o suficiente para colapsar os sistemas de saúde e causar terror nas áreas mais infectadas). Para muitos isso tudo é bobagem e deveriam isolar apenas os grupos de mais alto risco como idosos e pessoas com doenças crônicas ou em estado imunolõgico depressivo (isolamento vertical).
Para os que podem - e aceitam - se isolar no conforto de suas casas e apartamentos abastecidos e seguros resta um problema cada vez mais comum: o que fazer no tempo livre? Como disfarçar o fato de que estamos presos por causa de um perigo real e invisível? Como viver sózinho, consigo mesmo? Como viver junto a pessoas que nada mais tem a ver consigo? Entre a solidão e "o inferno são os ouitros" parte da população se resguarda nos seus cocoons. A outra parte sai à luta por vocação profissional ou simplesmente para ter o que comer.
A prisão domiciliar nem sempre é a placidez monótona, o tempo do ócio criativo ou a descoberta interior no estilo da Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre, escrito em 1872, durante sua prisão domiciliar.
Entre arrumar a casa, cozinhar, cuidar dos outros, se adaptar ao trabalho remoto (para aqueles conectados e empregados em lugares mais sofisticados), responder mensagens nas redes, se informar pelo noticiário intenso, ler algum livro, assistir filmes e falar virtualmente com pessoas que não víamos a tempos, o dia passa sem que o tédio contamine nossas vidas. Para os que não tem trabalho nem conexões, resta a solidão estéril se não estiverem acostumados a uma vida interior enriquecida por leituras, meditações, orações ou o prazer de estar consigo mesmo. Cada um atravessa esse período com suas possibilidades e carências, medos e virtudes.
Esse tipo de experiência-limite (Quanto tempo durará o isolamento? Seremos contaminados?, Como ficará a economia em geral? Como ficará a minha economia?) afeta as pessoas de maneiras diferentes. Para as novas gerações fica uma dura lição de vida: precisamos sempre nos preparar para momentos difíceis provocados por crises individuais ou coletivas. Planejamento estratégico, informação, prudência e capacidade de ler cenários com lucidez são habilidades que devem ser desenvolvidas e praticadas se quisermos sobreviver às vicissitudes da vida.
O pavor irracional. Ilustração de Estação Perdido, texto de China Miéville.
No caso do Brasil temos outro problema que é a inépcia comprovada do presidente da República. Certamente ele é o pior mandatário do planeta em termos de incompetência, boçalidade e má-fé. Sua biografia é uma mescla de mediocridade, ressentimento e tacanhice. Mas ele está em um contexto do país no qual cerca de um terço da população o apoiou orgulhosamente, mesmo quando demonstrou algumas das qualidades mais desprezíveis do ser humano como machismo, racismo, misoginia e homofobia. Nesse contexto o Brasil vive hoje outra polarização: entre as medidas de isolamento social para conter a pandemia do Covid-19 e tentar "achatar a curva" do contágio e diminuir os efeitos desastrosos no sistema de saúde público e privado ou simplesmente suspender o isolamento, soltar o povo pelas ruas e ver no que dá. Morrem alguns milhares mas se perserva a economia. Só que isso é uma falácia, um engano, segundo vários especialistas em saúde pública e gestão de crises.
Essa polarização passa exatamente pelas características que marcam os últimos anos do Brasil: ascensão de um neoliberalismo selvagem, aumento dos discursos de ódio e medo, valorização da boçalidade e ignorância em detrimento das artes, ciências e cultura. Então os argumentos dos pesquisadores e profissionais da saúde, nacionais e estrangeiros, que propõe o isolamento são contestados por alguns políticos (a começar do presidente), empresários e investidores. Esses estão mais interessados na preservação do modelo econômico concentrador de riquezas do que em políticas públicas preventivas que cuidem da emergência epidemiológica, dos problemas nas redes de saúde causados pela eclosão da pandemia e TAMBÉM dos efeitos prejudiciais que a recessão econômica, resultante da paralização de várias atividades produtivas, trará para pessoas físicas, jurídicas e os Estados. Temos que pensar na saúde e na economia, necessariamente nessa ordem. Bill Gates declarou ontem que "será mais fácil recuperar a economia do que as vidas humanas".
Evidentemente os empresários que sempre se lixaram para os direitos fundamentais dos trabalhadores(as) estão por trás dessas propostas que minimizam os investimentos públicos para conter a crise de saúde e a consequente crise econômica. Responsáveis de grupos empresariais como Madero, Havan, Centauro e do agrobusiness apoiaram Bolsonaro desde a campanha eleitoral e hoje protagonizam a defesa do egoísmo e da visão exclusiva de lucros em detrimento de uma visão sócio-política inclusiva, visando atenuar a crise para todas as classes sociais. Em meio à essa discussão iniciada no mainstream da comunicação (grande imprensa) surgem boatos, teorias da conspiração, fake news e outras bizarrices que infectam as redes sociais. Em um país marcado pela manipulação grosseira, pelos mercenários da fé pseudo-cristã e pelas milícias reais ou virtuais, aliado ao baixo nível de informação qualificada, o ambiente de notícias é mais letal que a pandemia virológica.
Boa parte do mundo optou pelo isolamento social, o Japão cancelou a Olimpíada, centenas de eventos importantes foram cancelados ou postergados, quase 300 navios de cruzeiros marítimos estão parados, as companhia aéreas paralisaram milhares de jatos devido à falta de passageiros, várias cidades interromperam suas atividades para evitar aglomerações humanas, tudo isso para diminuir a probabilidade de contato e contágio. Mas o presidente e um grupo de "iluminados" entende que isso é bobagem. Sem falar do maior imbecil, Olavo de Carvalho, "guru" degenerado do bolsonarismo, que encara essa pandemia como uma mentira global para beneficiar determinados grupos.
Parte da classe média embarcou no fluxo malsão de bobagens ditas enfaticamente com rótulo de verdades absolutas e reproduz histericamente esse lodaçal, em um processo que vem desde 2013/2014, quando a racionalidade cedeu às paixões frustradas e aos ressentimentos cozidos no fogo brando da má-fe.
E agora?
Quanto tempo durará o isolamento? Como terminará a pandemia? Quais serão os efeitos na economia e na sociedade? Por hora não há respostas, apenas projeções, análises de cenários, especulações e palpites. O certo é que a peste pode gerar a fome e essa gerar a guerra social. Os quatro cavaleiros do Apocalipse são proclamados pelos falsos profetas para atemorizar e dominar parcelas da população, visando interesses financeiros e políticos futuros. No próprio discurso de alguns políticos e profissionais ligados ao combate da pandemia já se percebe laivos interesseiros visando um butim político ou mercadológico. Enquanto isso os profissionais sérios e dedicados da saúde e dos serviços básicos arriscam suas vidas para garantir o mínimo bem estar da população. Heróis e heroínas anônimos que garantem as bases da civilização.
Ilustração do livro Estação Perdido, de China Mieville
Muitas respostas virão em duas ou três semanas. Especialistas afirmam que o pico da eclosão do Covid-19 no Brasil será mais ou menos entre 6 e 20 de abril. Segundo previsões teremos entre 5 e 7 mil mortos, colapso da saúde, milhares de pessoas internadas e uma realidade similar à que a Itália e Espanha vivem esses dias, com a diferença que o Brasil possui menos recursos tecnicos e financeiros, um número imenso de pessoas carentes morando nas ruas, favelas ou bairros superpovoados. Além de faltar uma liderança política consolidada, o que gera incerteza e especulações sobre impeachment, golpes ou ameaça de convulsão social e endurecimento do regime.
Logo veremos, talvez horrorizados, um cenário catastrófico, antecipado por cientistas e analistas qualificados. Algumas cidades como São Paulo constroem hospitais de campanha ou adaptam edifícios para receber doentes com sintomas leves do Covid-19, garantinto os leitos hospitalares convencionais para os doentes graves, além de investir na fabricação de máscaras, álcool gel e equipamentos médicos para atender a demanda emergente. São exceções. Boa parte do país está apenas esperando pra ver. Alguns entendem que o presidente oligofrênico tem razão em qualificar isso de "gripezinha" ou "resfriadinho". Alguns pastores neo-evangélicos embarcaram oportunisticamente nesse discurso para não perder o fluxo financeiro de suas igrejas, assim como alguns empresários interessados em manter seus lucros, não importa quantos morram. Afinal, velhos e doentes são descartáveis para quem tem uma visão egoísta do mundo. Esses egoístas são o lixo terminal de nosa civilização adoentada.
Muitas dessas dúvidas serão esclarecidas em menos tempo que esperamos. A histporia está em pleno desenvolvimento. Os jogos mortais estão no início.
Isole-se. Proteja-se. Não seja vítima da burrice alheia.
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