quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Shibumi - um sofisticado clássico de espionagem



Há uma livraria em Santos, na avenida Ana Costa, quarteirão da praia, que me excita ótimas lembranças. Entre 1979 e 1985, trabalhei a bordo do navio Funchal, um barco com dez mil toneladas fretado pela Abreu para cruzeiros no Brasil. Eu era do staff Abreu de bordo, com várias tarefas interessantes e mordomias atraentes, o que permitia ler nas horas vagas e eu me abastecia com os livros justamente naquela livraria, hoje uma franquia da Saraiva. 

Nessas férias passei uns dias em Santos e lá fui procurar algo prazeroso para ler e ao meu estilo. Achei um livro meio raro. É comum encontrar preciosidades em livrarias, sebos e feiras. É mistério insondável como encontramos um objeto, um texto ou artesanato, gostamos muito da peça, mas deixamos para comprar em outro lugar e ... nunca mais a encontramos. Então, assim que vi Escalada mortal (The Eiger Sanction, no original), do Trevanian, comprei e degustei. 

Trevanian foi um autor norte-americano que evitava entrevistas e escrevia com pseudônimo, criando um mistério que engendrou várias teorias conspiratórias. Seu nome real era Rodney William Whitaker (1931-2005), professor de cinema nos EUA, autor de oito livros com o pseudônimo Travanian, dois livros assinados como Nicholas Seare e cinco livros de ensaios com seu nome verdadeiro, Rod Whitaker. Escalada Mortal foi seu primeiro romance. 



As informações sobre ele, no International Movies Data Base (IMDb) estão no link: 

 
E na wikipidia,em inglês:


O personagem principal desse primeiro livro é Jonathan Hemlock, linguista, professor universitário, cínico, alpinista, hedonista, arrogante e assassino profissional. É uma caricatura de espião hiper-treinado, dotado de habilidades fantásticas e extremamente desenvolvidas. Entre suas muitas capacidades, Hemlock era capaz de manter longamente seu estado erétil, apesar de não sentir prazer algum com suas inúmeras mulheres. Mais  impressionante que isso, apenas seus olhos instigantes, seja lá o que isso signifique. 

Hemlock (cicuta, em inglês) é a primeira versão do que seria, em sua obra-prima, seu grande personagem literário: Nicholai Hel. Filho de mãe russa e pai alemão, vivendo em Xangai da década de 1930, o garoto prodígio desenvolve nas ruas e nas suas truncadas relações sociais que antecedem a II Guerra, seu lado psico-emocional e as suas habilidades materiais como os dotes linguísticos, raciocínio lógico, uma sensibilidade extremada para o perigo, além de ser frio, místico, especialista em Go (um jogo estratégico japonês), explorador de cavernas e também assassino profissional, atuando contra terroristas e independentemente de governos ou agências. É como um ronin mutante, em plena Guerra Fria, vivendo com glamour e sofisticação. O livro Shibumi, lançado em 1979, tornou-se um sucesso internacional na sua época. Li há uns 30 anos e mal lembrava os detalhes do enredo, cenas etc., mas persistia claramente a sensação de uma leitura instigante e enriquecedora. 
 
Sempre gostei de livros de espionagem (Frederik Forsyth, David Morrell), táticas de guerra (Tom Clancy), terror (Poe e Lovecraft), ficção científica (Clarke, Asimov, Philip Dick...) e os carismáticos psicopatas como Dexter e Annibal Lécter. Shibumi é especial por ser uma mescla de tramas políticos internacionais, relatando o drama da formação pessoal integral e as lutas pela sobrevivência de um jovem em um mundo caótico que o envolve vorazmente. É um romance de formação de um agente da semi-organizada violência internacional, com fortes críticas ao cinismo da política da Guerra Fria, aos jogos de poder e espionagem e às traições e interesses nefastos de corporações, governos e seres humanos.  Ler e curtir A Escalada Mortal, fez com que eu relesse o clássico Shibumi... e o prazer foi maior que o da primeira vez. 


 A maturidade me fez apreciar mais profunda e amplamente as ironias, os paradoxos e as críticas cínicas feitas em uma reflexão lúcida e fria sobre a problemática contemporânea. Trevanian relata nosso mundo de cíclica violência, os desafios globais cada vez mais complexos e as posturas venais e superficiais por parte de uma significativa parcela da população alienada dessas questões, enquanto outros se engalfinham pelo poder. O caos e as organizações que lucram com o caos permeiam a vida de Nicholai Hel, descrito como um anti-herói medieval imerso em sua disciplina e dignidade. Especialista em matar sem armas, sempre disponível para belas mulheres, desde que sem compromisso, sem pátria ou nacionalidade (mas com cinco passaportes falsos), Hel se cerca de um luxo austero, é um esteta com ótimo gosto, um homem frugal mas exclusivo, com uma concubina mestiça igualmente especial e fascinante. Em sua vida tudo é feito com liberdade e o máximo de perfeição, seja sua alimentação, os exercícios físicos nas cavernas (espeleologia é mais discreto que montanhismo, mais desafiador por ser na escuridão e mais próximo de nossos medos primordiais), as bebidas alcóolicas raras, o sexo (ele é especialista em exercícios sexuais e sente prazer com as mulheres), a meticulosa jardinagem ou a restauração de seu fortim nas montanhas bascas, entre a França a Espanha.


O texto já aponta a importância das novas tecnologias de informação em contraste com a crescente alienação das massas pelas mídias superficiais e comprometidas com o lucro fácil. Ao mesmo tempo ele realça a importância de uma educação que valorize os aspectos intelectuais mais sutis, as habilidades técnicas, a disciplina constante e a estabilidade emocional, assim como um desenvolvimento espiritual enriquecedor.  

As lutas de Hel são contra o terrorismo islâmico ou esquerdista da época, mas também contra as agências de informação dos Estados Unidos (a CIA é o alvo preferencial), contra os abusos da ex-União Soviética, as atrapalhadas das agências europeias (França, Reino Unido) e a estupidez da ditadura franquista. Trevanian já vislumbra o século XXI:

Já houve um tempo na comédia do desenvolvimento humano quando a salvação parecia estar na direção da ordem e da organização ,e todos os maiores heróis ocidentais organizavam e dirigiam seus seguidores contra o inimigo: o caos. Agora estamos aprendendo que o último inimigo não é o caos, mas a organização; não a divergência, mas a similitude; não o primitivismo, mas o progresso. E o novo heróis, o anti-herói, é alguém que transforma em virtude o ataque contra a organização, que destrói os sistemas. Percebemos agora que a salvação da espécie se encontra na direção do niilismo, mas ainda ignoramos até que ponto.” (Shibumi, pág. 337).

Gostei tanto de reler (e entender melhor a complexidade do texto) que procurei mais informações sobre Trevanian. E encontro no oráculo universal (o velho google) que Nicholas Hel renascera pelas mãos de um outro autor, já que Trevanian morreu em 2005. Mas quem, pensei, teria competência estilística e sensibilidade temática para reviver a um personagem tão insólito e marcante, em termos de caráter, ironias e atitudes? 

O nome é Don Winslow, um autor que eu pensava, erroneamente, desconhecer. Ele escreveu 16 romances, entre eles Selvagens (2010) e Kings of Cool (2012). Sua novela inspirada em Shibumi foi publicada em 2011, com o título de Satori. Ambos termos numinosos da língua japonesa que remetem a estados de mente ou espírito alcançados por alguns iniciados, em variados níveis de percepção e fruição. 


 O texto de Winslow é direto, sarcástico e sem grandes concessões ao politicamente correto. Ele mostra a marginalidade da América descolada, hiper-moderna e sensual, com suas neuroses e traumas intrinsicamente ligados à violência. Lembra o breve romance de Raymond Carver, Short Cuts (transformado em file dirigido por Robert Altman, em 1993) e, de certa forma, pelo estilo literário, Onde os velhos não tem vez, de Cormac McCarthy (No country for old men, de 2005, levado ao cinema em direção dos irmãos Cohen, em 2007, ganhador de 4 Oscars, inclusive o de melhor filme). Mas McCarthy é um dos grandes clássicos norte-americanos, acima da média alta e possuidor de um texto incomparável.
 
 Winslow acertou plenamente seu estilo em Selvagens e Kings of Cool. Selvagens virou um delicioso filme dirigido por Oliver Stone (2012), aproveitando a onda de violência mexicana, o glamour inesgotável do sul da Califórnia e o  crescimento do cinismo global após atentados de 2001. Lembro que que me impressionou pelo hedonismo, ousadia e violência estética, lembrando inexoravelmente Tarantino. É daí que conhecia, mesmo sem plena consciência, pelo menos uma obra de Winslow.  Com esse histórico, ele credenciou-se a escrever a continuação do anti-herói de Trevanian. Satori está na minha lista de encomendas da Amazon, pois ainda não chegou ao Brasil. 


A conferir se a continuidade bastarda de Satori mantém o tônus e densidade de Trevanian.

Mais informações sobre Don Winslow nos sites:

 
 

 Bibliografia:

Shibumi. Trevanian. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979 (esgotado, tente nos sebos)

Escalada mortal. Trevanian. São Paulo: Landscape, 2007. 

Selvagens. Don Winslow. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.

Kings of cool. Don Winslow. Rio de Janeiro: Intrpinseca, 2013. 


 

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