Quando assisti ao
último filme publicitário da Embratur não contive a gargalhada. É muita
desfaçatez e cara-de-pau afirmar uma coisa dessas. Ou eles não conhecem o
Brasil (improvável), ou não sabem o que é “perfeito” ou, mais seguramente, ignoram o que significa
viajar decentemente na segunda década do século 21.
Segundo o release, O
novo filme criado pela Artplan para o Ministério do Turismo entrou no ar em
dezembro, no início do verão. O objetivo é incentivar o turismo interno e
apresentar ao público alternativas de roteiro, como viagens por regiões
serranas, turismo ecológico, além, é claro, das regiões de sol e praia. Com o
conceito “você vive em um país perfeito
para viajar”, o filme faz os brasileiros perceberem que nasceram e moram em
um lugar onde o mundo inteiro tira férias. A campanha tem filmes de 60” e 30”,
veiculados em TV aberta e fechada em todo o Brasil.
Esse tipo de frase infeliz
tem a ver com aquela pérola “O melhor do
Brasil é o brasileiro.” Ótimo, o melhor da Rússia são os russos, o melhor
da Argentina são os argentinos e o melhor da Inglaterra são os ingleses.
Então?... Zero a zero em termos de eficiência publicitária (ou de mera
inteligência básica).
Mas se você ainda não
assistiu ao filme irônico e descabido da Embratur, acesse:
Depois das risadas me
veio à mente o que meus colegas daqui e do exterior, que estudam turismo e conhecem
o Brasil, pensariam desse filme carregado de conceitos equivocados, ufanismo
arcaico, primitivismo conceitual e bonomia barata. Sem contar nós, brasileiros
e brasileiras em geral, que sabemos muito bem que este país é um caos para
viajar, se deslocar, estacionar, embarcar em aviões ou navios...
Mas vamos à uma análise
das frases dessa pérola publicitária subdesenvolvida.
“Já imaginou morar num lugar onde as pessoas passam férias? Um lugar
onde o sol brilha o ano inteiro e que tenha tudo que você precisa para relaxar?
Praias incríveis, montanhas deslumbrantes, contato com a natureza, mas também
com a energia das cidades.”
Para começar quem passa
férias aqui, além de nós mesmos? Só para ficar nas estatísticas básicas em
2012, cerca de um bilhão de pessoas fez viagens internacionais (1.035.000.000,
segundo a Organização Mundial do Turismo):
Desse um bilhão de
viajantes, apenas 26,7 milhões vieram para a América do Sul. Isso significa
2,6% do mercado internacional rumo ao nosso continente. Para o Brasil vieram
apenas 5.677.000 viajantes, um número ainda bastante modesto face nossa
capacidade latente que seria de uns oito ou nove milhões de visitantes por ano,
pois estamos geograficamente distantes das maiores e melhores rotas turísticas
internacionais.
Veja os top ten da área:
França: 83 milhões de visitantes em 2012
EUA: 67
China: 57,7
Espanha: 57,7
Turquia: 35,7
Alemanha: 30,4
Reino Unido: 29,3
Rússia: 25,7
Malásia: 25
Então não é “um lugar onde as pessoas passam férias”,
é um canto do planeta que tenta aumentar sua participação em um mercado trilionário
(pouco mais de um trilhão de dólares, em 2012). Contamos com a ajuda dos
megaeventos que até agora, meses antes da Copa do Mundo, não mostrou sequer um
cronograma cumprido de obras em vários estádios e muito menos no “legado” para
o país.
Quanto a passar as
férias, cada vez mais brasileiros que podem gastar um pouco mais, preferem ir
ao exterior. Não é apenas porque é chic,
para postar fotos nas redes sociais ou fazer compras. É porque existe muito
mais qualidade dos serviços em geral a preços justos (em alguns lugares bem baratos,
dependendo da flutuação do dólar e do euro). Há, em geral, nos países
desenvolvidos ou que respeitam o turismo uma imensa oferta organizada de lazer,
entretenimento, gastronomia, artes e cultura, natureza preservada e
infraestrutura urbana.
“Um lugar onde o sol brilha o ano inteiro.” Depende muito, há vastas
áreas do litoral onde chove intensamente no verão, sem falar da Amazônia onde
chove diariamente boa parte do ano. De resto, os desertos quentes da Terra têm
sol o ano inteiro e há pouco fluxo turístico para essas regiões desoladas. Sol
e praia são motivações da década de 1970, quando o ufanismo da ditadura
procurava vender um paraíso que começava a ficar poluído e que, décadas depois,
nunca teve infraestrutura razoável.
“Um lugar que tenha tudo o que você precisa para relaxar”. Só se for
o relaxo, o descaso, a impunidade e a falta de controle (apesar da farta e
estúpida burocracia) que são mais ou menos regras em grande parte dos destinos
turísticos. Há exceções na bagunça, mas são as bolhas destinadas aos mais ricos
que chegam de helicóptero (ou os helipópteros), barcos privados ou carros que
os deixam em condomínios privados e similares. No geral a violência no
trânsito, tensão com os congestionamentos, perigos de criminalidade nas
estradas, o péssimo serviço nos portos (pobres do que viajam nos cruzeiros
marítimos, para embarcar ou desembarcar) e aeroportos causam, no mínimo,
aborrecimentos. Entre 20 de dezembrode 2013 e 01 de janeiro de 2014, tivemos
379 mortos nas estradas do país, número comemorado na mídia, pois foi cerca de
9% mais baixo que o ano anterior.
O relaxamento, ou a
tranquilidade, são uma miragem face aos números de violência urbana. Os dados
de 2013 do Conselho Cidadão para a
Segurança Pública e Justiça Penal (México) mostram que das 30 cidades mais
violentas do mundo, dez são brasileiras. Começa com Maceió (6º lugar),
continuando para João Pessoa (10º), Manaus (11º), Fortaleza (13º), Salvador
(14º), Vitória (16º), São Luís (23º), Belém (26º), Cuiabá (28º) e Recife (30º).
Notem que São Paulo e Rio de Janeiro não aparecem nessas estatísticas. É porque
são relaxadas e seguras? Não, simplesmente as cidades menores ultrapassaram as
maiores metrópoles brasileiras no quesito violência (assassinatos, roubos,
sequestros). Realmente, um país perfeito para viajar e relaxar. Mas ninguém
pode negar que nossas cidades não tenham uma energia vibrante e emocionante.
Quais são as cidades
mais violentas do mundo? São Pedro Sula (Honduras), Acapulco (um “paraíso”
turístico no México), Caracas, Distrito Central (Honduras) e Torreón (México).
Aliás, recentemente um site
(veja abaixo) colocou o Brasil como o sexto país mais perigoso do mundo, depois
da Síria, Iraque, Somália, Afeganistão, Sudão e Sudão do Sul. Em sétimo lugar
vem o México, depois Paquistão, Coréia do Norte e Colômbia. Mas esses dados
merecem pouco destaque na mídia nacional e foram parcamente comentados na área
acadêmica (com exceções). Realmente, um país perfeito para viajar...
Quanto ao “contato com a natureza”, basta analisar
os índices de contaminação das praias, rios, lagos e lagoas, falta de medidas
sanitárias em vários balneários, devastação ambiental provocada pela especulação
imobiliária, pela miséria ou pela ganância de grandes especuladores. Há estados
(como o Maranhão) que esconderam do público a contaminação em suas praias
durante anos. Outros estados mostram índices quase diários de praias “boas”, “regulares”
ou “não apropriadas para banho”, com índices vergonhosos, mas pelo menos
corretos.
Quanto ao “conhecer um sabor por dia e fazer amigos em
todo lugar”, tudo bem. Nossa gastronomia é realmente maravilhosa, temos os
melhores restaurantes do mundo em São Paulo e Rio, devidamente destacados nos rankings internacionais. Nossa
hospitalidade é algo singular no mundo. Somos legais para festas, beber, dançar
e fazer sexo. O Brasil é um dos destinos sexuais do planeta, mas isso também é
uma área tratada com muito preconceito e discrição pelas autoridades, acadêmicos
e empresários. Nesse sentido sim, é um país perfeito para viajar, segundo
vári@s viajantes que já comeram as frutas e frutos desta terra.
O que supera as minhas
gargalhadas face esse filme bobo feito com sofisticação estética e tecnológica,
é a preocupação em não perecer idiota ou alienado aos dados reais sobre o turismo
brasileiro. Como acadêmico não posso apenas rir amarelo e compactuar com o
cinismo, a mentira deslavada e a omissão.
Já escrevi centenas de
páginas sobre o desenvolvimento do nosso turismo. Melhoramos em vários pontos nos
últimos vinte anos, mas ainda estamos há uma distancia imensa de padrões de
qualidade internacionalmente respeitados. Tampouco temos logística eficiente em
muitos setores, o planejamento é uma ficção, a infraestrutura é precária, a
formação profissional é pobre, as poucas políticas públicas nunca foram
consolidadas. Sem contar que nossos preços ficaram caros e os velhos problemas
ainda não foram solucionados. Desde criança (faz 50 anos!) sei que falta água
na Baixada Santista (SP) no verão e hoje, no noticiário, lá está novamente a
notícia da falta d´água. Teve tiroteio no réveillon em Copacabana, filas
imensas nas estradas para o litoral em vários estados (São Paulo, então...),
dezenas de carros ficaram atolados em uma praia no Maranhão porque teimam em
estacionar na areia e ninguém proíbe. Mas este ano (ainda) não tivemos
enchentes e desmoronamentos catastróficos (com exceção do Espírito Santo), porém
o verão mal começou com sua estação de chuvas.
Esse filminho
exemplifica como vivemos entre a bonomia e a má-fé. Entre a arrogância, a
pilhéria e a irresponsabilidade perante problemas que já poderiam ter sido
solucionados, mas convivem no caos cotidiano tupiniquim juntamente com otros
problemas nas áreas de educação, saúde, segurança pública, transporte público,
sistema prisional, corrupção e outras mazelas que se entrelaçam na triste
realidade do turismo nacional.
Que não nos enganemos
na Copa do Mundo quanto à nossa imagem internacional. Durante os jogos na
África do Sul (2010), ocorreram muitos problemas, mas a mídia global foi
leniente com o país, graças ao seu histórico sofrido e a luta para superar os
traumas. Porém com o Brasil será diferente. Somos vistos como um país rico,
ansioso por mais influência internacional (com razão), arrogantes com nossas
riquezas reais e imaginarias. Somos insolentes e peitamos firme quando se
atrevem a nos criticar. Alguns têm a ilusão de viver em um paraíso em meio ao
caos global. A mídia não terá pruridos em criticar o Brasil (aliás, já fomos muito
criticados pelos atrasos no cronograma da Copa e das Olimpíadas), se ocorrerem
problemas durante os jogos.
Então, para começar,
que tal conter a arrogância e a babaquice e evitar lemas ufanistas, inócuos e ridículos? Afinal,
ainda não vivemos em um país perfeito para viajar. Nem para estudar. Nem para a
saúde e o saneamento básico. Nem para a segurança pública.
Quando estivermos entre
os vinte países com Índice de Desenvolvimento Humano mais alto (estamos em um
vergonhoso 85º lugar..., veja a lista completa no link abaixo), talvez possamos botar mais banca quanto às nossas
qualidades lindas e maravilhosas. Mas quando (e se) lá chegarmos, teremos
lucidez e consciência suficientes para dizer apenas que, por exemplo, somos um
país bem interessante para conhecer.
Luiz Gonzaga Godoi
Trigo, 2014.
7 comentários:
Prof Trigo, gostei de sua avaliação lúcida corajosa e necessária. É esse o papel dos acadêmicos, mostrar as falhas das políticas públicas! Essas propagandas irreais, vinculadas ao plano metafísico, desvinculados da realidades chegam mesmo ao ridículo.
A realidade brasileira é de descasos com a educação, saúde, segurança que são essenciais para sermos bons anfitriões e prestadores de bons serviços.
Parabéns pela análise e solicito permissão para publicar o texto em outros espaços.Valeu a colaborão. Desejo que seja lida pelo trade do Brasil.
Luzia Neide Coriolano. UECE - Ceará
É isso Dom Luiz!
Em 1999, na Bahia, eu recebia uma Missão do BIRD que viera analisar um projeto para financiamento na formação profissional para a área de Turismo e Hospitalidade.
Então uma das integrantes do grupo, de origem estadunidense, conhecendo a Praia do Forte, perguntou:
- Por que as praias não têm banheiros? Como o turista faz suas necessidades?
Então...
Caro Trigo, muito lúcida e correta sua leitura da "peça" da Embratur, parabéns. Compartilho da visão que apresenta, sobretudo porque detesto esta mania de se vangloriar por pouco e aquela outra, de esconder a verdade.
Abraços,
Heros Lobo - UFSCar, Sorocaba-
SP
Parabéns. Excelentes comentários. Fiz recentemente uma viagem para o nordeste (sou de CTBA). Aluguei um carro e fui de Alagoas a Paraíba pelo litoral. Lindas e maravilhosas praias, sem dúvida mas... Muita poluição, esgoto a ceu aberto, mau cheiro, pessoas oportunistas, assaltos, violência, falta de pousadas. Assédio de guias que te fazem passar raiva ao invés de relaxar. E preços absurdos. É, da proxima vez vou considerar ir ao exterior porque nosso lindo pais é uma piada. O problema é que o brasileiro (em geral) não tem senso crítico, sempre quer levar vantagem em cima dos outros e acredita muito em mídias como a TV brasileira. Há excessões, mas são poucas.
Lúcido, corajoso... verdadeiro. Infelizmente!
Existem falhas sim. O que podemos fazer é um bom trabalho, pesquisas, interferências, reivindicações e colaborações.
Parabéns. Excelentes comentários.
Verdade seja dita!
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