Os sentimentos das
pessoas aguardando o anúncio do nome pela mídia global e redes sociais; as
ovações e a torcida na Praça São Pedro; a atmosfera real e virtual que
perpassou os minutos entre o lançamento da fumaça branca na noite fria de Roma
e o anúncio do nome do escolhido, o Papa Francisco, tudo convergia para a Esperança.
Uma das três virtudes cardeais (Fé, Esperança e Caridade), a Esperança é
justamente o desejo ardente de se conseguir, em um mundo conturbado e abalado
por crises sucessivas, que a Fé seja permeada pelo Amor.
Cristãos, católicos e
protestantes, em vários lugares do mundo, tornaram-se alvo de escândalo e
vergonha, de falsos testemunhos e condenações judiciais –justas, por sinal –
contra alguns de seus membros e dirigentes. O cinismo, a hipocrisia, a mentira
deslavada, a ambição desmedida, o orgulho, a luxúria, enfim, todos os sete
pecados capitais e mais alguns defeitos morais, macularam ao longo da história a
honra e a glória de muitas igrejas. Somos todos humanos e, portanto, sujeitos a
limites e erros, mas quando o pecador ou criminoso é alguém que detém o saber e
o poder, a ética e a moral, isso é muito grave para a sociedade.
O contexto global
tampouco se diferencia muito dessas crises religiosas paroquiais. Desde o final
do século XX, grandes mitos terrenos são destruídos pela História: o socialismo
real, a estabilidade financeira de mercados pretensamente bem administrados, as
crises econômicas, o terrorismo político e religioso (especialmente islâmico).
As mudanças ocorridas na virada do século XX para o século XXI deixaram à
mostra as vulnerabilidades dos grandes impérios e potências. Tudo isso causou
ondas de dúvidas, incertezas e angústias, face ao presente e ao futuro.
Então surgem as surpresas
na Igreja: o alemão Josef Ratzinger, o Papa Bento XVI, renuncia, quebrando uma
tradição de 600 anos, em que todos os Papas saíam mortos do cargo. Nesse
cenário surge o primeiro latino-americano e o primeiro jesuíta a ser indicado Papa:
o Cardeal Primaz de Buenos Aires, Argentina, Jorge Mário Bergoglio. Ele
escolheu o nome de Francisco, um
nome comum a vários santos como Francisco
de Assis, 1182-1226 (místico e fundador da Ordem Franciscana), Francisco de Sales (1567-1622), Francisco Xavier, 1506-1554 (jesuíta,
apóstolo do Oriente), Francisco de
Bórgia, 1510-1572 (também jesuíta, foi o terceiro Superior Geral da
Companhia de Jesus).
Homem de hábitos
simples e franco. Conservador, segundo alguns; moderado, segundo outros, o Papa
Francisco possui uma sólida formação intelectual característica dos religiosos
da Companhia de Jesus, os jesuítas. Fundada pelo espanhol Ignácio de Loyola, em
1534, e reconhecida por Bula Papal em 1540, a Companhia de Jesus surgiu para
dar maior credibilidade à Igreja Católica na época da Contra-Reforma. Surgida
no seio de estudantes da Universidade de Paris, tinha como proposta a
sobriedade, austeridade, espírito missionário e profundidade intelectual capaz
de evangelizar e administrar suas obras de maneira eficiente. Além dos
tradicionais votos religiosos de pobreza, castidade e obediência, ainda fazem
um quarto voto de obediência expressa ao Papa.
Em pouco tempo os
jesuítas tornaram-se uma ordem religiosa poderosa e influente na Europa, nas
Américas e no extremo Oriente. Tão poderosa ficou que foi perseguida e
eliminada pelo Marquês de Pombal, em Portugal (1759); pelos jansenistas e por
parte da corte francesa (1764); e pelo rei Carlos III, da Espanha (1767). Submetido
a forte pressão, principalmente dos espanhóis, o Papa Clemente XIV suprimiu a
Companhia de Jesus, em 1773. A instituição se manteve na Rússia, graças à
tolerância da Czarina Catarina, a Grande, que abrigou muitos padres e irmãos para
se beneficiar de sua erudição, senso de gestão e capacidade organizacional para
formar colégios, hospitais e universidades. Com as mudanças de poder
eclesiástico e real pela Europa, a Companhia foi restaurada pelo Papa Pio VI,
em 1814, e cresceu significativamente ao longo dos séculos XIX e XX.
Atualmente, os Jesuítas
formam a maior ordem religiosa da Igreja Católica. Possuem quase vinte mil
membros, em 112 países. A Companhia caracteriza-se por ter vários
estabelecimentos de ensino, incluindo superior. No Brasil, as universidades
Católica do Rio de Janeiro, Católica de Pernambuco, do Vale do Rio dos Sinos
(RS) e o Centro Universitário FEI, em São Paulo, pertencem à Companhia de Jesus.
Essa é uma das mais recentes obras sobre a história dos jesuítas, publicada por sua editora (Comillas), na Espanha.
É uma das ordens pais
influentes e poderosas da Igreja. Ao longo de sua história testemunhou 19 de
seus religiosos serem canonizados (santificados) e vários outros serem
beatificados. Sete dos cardeais são jesuítas, o Papa (recém-eleito) e vários
cargos importantes na burocracia do Vaticano estão nas mãos da ordem. Seu
superior geral, padre Adolfo Nicolás, o trigésimo de seus chefes máximos, é
também conhecido como Papa Negro. O nome tanto é pela cor
de sua batina como pela influência que exerce á frente de seus seguidores,
geralmente homens bem selecionados, preparados e extremamente atuantes, seja
como educadores, gestores, missionários, teólogos, cientistas ou filósofos.
Agora um de seus homens é o Papa Branco, o chefe máximo de toda
a Igreja Católica. Entre o
conservadorismo doutrinal da Igreja (e de suas ordens religiosas e laicas) e
sua ação pastoral junto aos pobres e ao povo em geral, há várias nuances
cinzentas, matizes ideológicas, políticas e culturais, que formam o edifício
conceitual de uma das mais antigas instituições do mundo.
Os jesuítas são alvo privilegiado
de mitos, lendas e superstições. Entretanto, sua fama e poder são justificados.
Às vezes conhecidos como arrogantes, pragmáticos, diplomatas ou articuladores
do poder, os jesuítas souberam conquistar espaço junto às cortes europeias dos
séculos XVII e XVIII. Baltasar Gracián, um jesuíta espanhol, escreveu Oráculo manual y arte de prudência, um
livro com 300 aforismas, publicado em 1647, que se tornou um clássico para a
conquista e manutenção do poder, a exemplo das obras de Maquiavel e do Cardeal
Mazarino (1602-1661), que foi educado pelos jesuítas, assim como grande parte
das elites de sua época.
O jesuíta Pedro Miguel
Lamet escreveu O último jesuíta
(Madrid: La Esfera de los Lbros, 2011), onde conta de forma romanceada como as
potências europeias se uniram para conseguir que Clemente XIV extinguisse uma
obra tão significativa para o mundo. Para ele, “a Companhia foi culpada por seu êxito. Não há nada que seja mais
perigoso que o êxito. Ele fomenta demais a autoestima, o espírito de corpo, a
segurança. Creio que Voltaire disse que o que acabou conosco foi o orgulho.”
(pág. 546).
Nas Américas os
jesuítas tiveram extrema participação na fundação de cidades, colégios, missões
e fazendas. O historiador Paulo de Assunção, autor do livro Negócios Jesuíticos (São Paulo: Edusp,
2009), faz uma análise da competência do planejamento e gestão de seus membros
que sabiam constituir fazendas e propriedades altamente lucrativas na colônia
brasileira. As famosas reduções jesuíticas dos guaranis, localizados entre Rio
Grande do Sul (Brasil), parte do Paraguai e Argentina, foram foco de uma das
mais bem sucedidas colonizações junto aos indígenas guaranis, mas provocou ciúmes
e o medo de seus vizinhos que tudo fizeram para destruir a experiência
sócio-religiosa e econômica. O livro clássico de Clovis Lougon, A república comunista-cristã dos guaranis –
1610-1768 (Paz e Terra, 1977), é um dos muitos textos que analisam as
reduções, que também existiam em outros lugares das Américas. Sua finalidade
era proteger os índios da escravidão colonial e garantir-lhes recursos
materiais para sua sobrevivência digna e livre. Foi a guerra contra os guaranis,
defendidos pelos padres jesuítas, que detonou o processo de deterioração das
relações entre a Companhia e os poderes constituídos nas colônias. O filme A missão (direção de Roland Joffé,1986),
é bastante fiel à história. Após sua expulsão proliferaram mitos de tesouros
jesuíticos das missões que teriam sido escondidos pelos padres nas florestas
tropicais. Puras lendas. Seus tesouros eram o conhecimento, o estudo e o método
conhecido como Exercícios Espirituais, desenvolvido por Santo Inácio, e essas
riquezas estavam nos corações e mentes dos religiosos presos ou expatriados.
Alegoria do Espírito Santo iluminando os Exercícios Espirituais. Na Cueva de Ignácio, em Manresa, onde os Exercícios começaram a ser desenvolvidos em 1522.
No extremo oriente, São
Francisco Xavier, companheiro de Santo Inácio de Loyola, fundou várias missões
que prosperaram e seus padres chegaram aprenderam as línguas locais, os códigos
culturais, tornaram-se diplomatas e comerciantes influentes. Ali também
desertaram a inveja e o ressentimento, tanto dos japoneses e chineses, quanto
dos europeus que os tinham como intermediários ou monopolizadores dos negócios
e tratados comerciais. Suas missões não prosperaram e eles foram expulsos da
maioria dos territórios onde conseguiram se infiltrar. O historiador Jonathan
D.Spence escreveu O palácio da memória de
Matteo Ricci (São Paulo: Companhia das Letras, 1986), relatando a viagem do
jesuíta italiano Ricci à Índia e China, onde viveu de 1583 a 1610. As descrições das viagens
marítimas, de como os padres decoravam longos textos para serem reproduzidos
nos destinos e a complexidade das civilizações orientais, fazem dessa leitura
histórica um romance pleno de emoções e aventuras. O romance de Shusaku Endo, O silêncio (São Paulo, Planeta, 2011),
descreve como os jesuítas, após um breve sucesso no Japão, favorecidos pelos
samurais, passaram a ser expulsos e perseguidos, sendo muitos torturados
brutalmente por insistir no trabalho da evangelização.
Vários autores
exploraram a fascinante e complexa história da Companhia. Um deles foi Renê
Fullop Miller que escreveu Os jesuítas –
seus segredos e seu poder (Rio de Janeiro: Globo, 1946). Para o autor, a
rigorosa disciplina, a liberdade individual e os exercícios espirituais foram
as bases de seu sucesso e crescimento. O semiólogo Roland Barthes, em Sade, Fourier e Loyola (São Paulo:
Martins Fontes, 2005), encara o texto dos Exercícios Espirituais como um texto
múltiplo, com quatro patamares de interpretação: literal, semântico, alegórico
e anagógico. O texto, articulado em vários níveis, abriga em todos eles a
questão do discernimento. Discernir é distinguir, separar, apartar, limitar,
enumerar, avaliar, reconhecer a função fundadora da diferença para, por sua
vez, saber escolher o que é melhor para si e para a comunidade. É isso o que o
papa Francisco precisará fazer ante ao cipoal de problemas que enfrentará no
Vaticano, na Europa, no mundo. Discernir para escolher os melhores caminhos e
evitar as armadilhas, os atalhos nefastos e os engodos que se mesclam aos
cenários. Sua memória, seu entendimento e sua vontade, intensamente exercitadas
na vida pastoral e eclesial, serão as ferramentas para navegar nas águas
profundas e perigosas da igreja deste início do século XXI, para usar uma
analogia de Ratzinger.
Manresa, Espanha. O edifício construído sobre a caverna onde Ignácio de Loyola morou, em 1522, é hoje sede para encontros retiros e Exercícios Espirituais.
Se quiser conhecer as
aventuras, ousadias e glórias dessa ordem religiosa fantástica, pode ler Os jesuítas, de Jean Lacouture (Porto
Alegre: L&PM, 1994). Mas uma das histórias impressionantes, pela teimosia,
dedicação, vontade e perseverança individuais, é a vida do santo fundador da
Companhia. O livro Inácio de Loyola,
sozinho e a pé, de J. Ignacio Tellechea Idigoras (São Paulo: Loyola, 1996),
mostra o doloroso processo de sua conversão após ser ferido em uma batalha. Inácio
era um nobre guerreiro, vaidoso e apegado aos prazeres sensuais da corte e
tornou-se um peregrino austero, estudioso, organizador de processos mentais que
facilitassem o caminho espiritual, intelectual e psicológico dos seres humanos
rumo a ordenação dos seus afetos, desejos e pensamentos. Isso possibilitaria
uma reflexão crítica e o discernimento entre as diversas opções de modo a
escolher a mais adequada, de acordo com os princípios cristãos.
O novo Papa foi
preparado por esses métodos poderosos denominados Exercícios Espirituais e
educado em uma das instituições mais intelectualizadas do mundo. Viveu em
Buenos Aires, uma grande cidade da América do Sul, conhecendo assim a vida difícil
e injusta das urbes latinas. É o primeiro jesuíta a se sentar na Cátedra de São
Pedro, chegando à plena realização dos ideais de Santo Inácio. Um homem
consagrado a obedecer ao Papa, torna-se Papa. Ele possui uma das mais
eficientes e disciplinadas organizações em suas mãos, a Companhia de Jesus,
conhecendo seus meandros, seus recursos humanos, econômicos, culturais e espirituais.
Bento XVI, o Papa Emérito, deve ter sorrido, no silêncio de seu palácio em
Castelgandolfo, quando ouviu o nome do seu sucessor.
Espera-se que Francisco
seja pessoa certa, no lugar certo e no momento histórico certo. A missão mais
difícil, já confiada a um jesuíta, acaba de começar: ele tem que colocar em
ordem as finanças do Vaticano e sanear o Instituto para as Obras da Religião,
eliminar as brigas de poder e ressentimentos na Cúria Romana, atender as
demandas de um mundo laico, sanear os vícios e ordenar os afetos selvagens de
sua elite administrativa.
Ao caminho, Papa
Francisco. Sozinho e a pé, como santo Inácio de Loyola.
Luiz Gonzaga Godoi
Trigo
Obs.: Meu nome, Luiz
Gonzaga, é em homenagem a um santo jesuíta, protetor da juventude.
5 comentários:
Muito bom o texto. Me deu saudades dos seis anos em que estudei com os Jesuítas em Mato Grosso...
Don Luiz: um texto didático, ilustrativo e que nos ensina bastante. Ah! Que seja o nosso jesuíta no comando da Igreja Católica uma Luz contra aqueles que fazem perder, essa instituição de dois milênios, suas possibilidades de fazer mais para diminuir os abismos sociais. oxalá o ampare!
Texto muito bom. As usual.
Sou aluno do 5º período de turismo da PUC-Minas e gostaria de parabenizá-lo pelo texto. Como católico praticante que sou, fico lisonjeado com tamanha didática, precisão histórica, isenção especulativa. Ainda que muitos não exerçam a fé nesta instituição, não podemos deixar de, também, reconhecer os benefícios da Igreja e ordens como a dos Jesuítas. Obrigado!
Oi, Trigo!!
Excelente o texto. Apesar de nesse momento, ter algumas críticas à SJ, reconheço os pontos positivos da Companhia e não deixo de reconhecer que a formação espiritual que tive, foi junto com os Jesuítas, e o interesse pela intelectual, também devo a eles, justamente com quem aprendi a ser crítico. Mas tais críticas são coisas pontuais (assim espero)!
Abraços!!!
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