domingo, 27 de fevereiro de 2011

Black Swan - a Sombra que assombra

Cisne Negro (EUA, 2010, diretor Darren Aronofsky, Oscar 2011 de melhor atriz para Natalie Portman) é um dos filmes que exploram o lado sombrio do ser humano, tendo como contexto a disputa de uma bailarina pelo papel principal do famoso balé Cisne Negro. Ela sente-se perseguida, mas o que a atemoriza vem do fundo de seu próprio ser.


Ela luta contra as profundezas obscuras de seu ser, ao mesmo tempo em que tenta encontrar uma perfeição idealizada e tão difícil de discernir quanto a tênue luz solar ante uma tempestade.


Em 1886, o escritor escocês Robert Louis Stevenson teve um sonho revelador: um bondoso cientista engolia um pó e se transformava num ser violento, maldoso, implacável (Dr. Jekyll and Mr. Hyde - O médico e o monstro). Ele intuiu que cada um de nós contém o personagem de um sonho: uma persona agradável para o uso cotidiano e um eu oculto, que permanece amordaçado a maior parte do tempo. Esse eu obscuro abriga emoções e comportamentos negativos como raiva, inveja, mesquinhez, falsidade, ressentimento, lascívia, cobiça, tendências suicidas e homicidas. Tudo isso fica escondido logo abaixo da superfície, mascarado pelo nosso eu mais apropriado às conveniências: é a Sombra.


Desde cedo aprendemos aquilo que é gentil, conveniente e moral e aquilo que é mesquinho, vergonhoso, egoísta e mau. A Sombra age definindo o que é eu e que é não-eu. Todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados e exilados na Sombra contribuem para o poder oculto desse lado escuro na natureza humana. Esse escuro inclui a nossa infantilidade egoísta, nossas reações emocionais impulsivas, nossa maldade e agressividade, nossos sintomas neuróticos, nossa loucura caótica bem como alguns talentos e dons não desenvolvidos.

A sombra é, por natureza, difícil de ser apreendida. Ela é perigosa, injusta, desordenada, ilógica, cruel, infantil e oculta. Por todas essas razões, vemos nossa sombra apenas indiretamente:

- Nas ações desagradáveis das outras pessoas, lá fora, onde é mais seguro observá-la; quando reagimos de modo intenso a uma característica qualquer (preguiça, mesquinhez, egoísmo, sensualidade...) de uma pessoa ou grupo e nos enchemos de grande aversão ou devoção e admiração, essa reação talvez seja a nossa Sombra se revelando. Atribuindo tais características à outra pessoa nós evitamos vê-las dentro de nós, mas sempre tendemos a redescobrir nossa sombra em confrontos desagradáveis com os outros;

- Tiradas humorísticas (piadas “sujas, ou brincadeiras sádicas ou tolas) que expressam nossas emoções ocultas, inferiores ou temidas. Em geral é a Sombra que ri das piadas. Pessoas sem senso de humor têm uma Sombra muito reprimida e aí vem a tragédia: aquilo que não fazemos aflorar à consciência aparece em nossas vidas como nosso destino;

- No feedback negativo que recebemos daqueles que nos servem de espelho;

- Nos nossos atos impulsivos e não intencionais;

- Nas situações em que nos sentimos humilhados;

- E, principalmente, na nossa raiva intensa e exagerada em relação aos “erros” alheios;

Nesses momentos nossa Sombra irrompe de modo inesperado Em geral ela retrocede com igual velocidade, pois encontrar a Sombra pode ser uma experiência assustadora e chocante para nossa auto-imagem. O objetivo de encontrar a nossa Sombra é desenvolver um relacionamento progressivo com ela é expandir nosso senso de self alcançando o equilíbrio entre nossas atitudes conscientes e nossas profundezas inconscientes.



Com esse perturbador encontro podemos avançar em muitos campos de nossas vidas: podemos obter uma auto-aceitação mais genuína baseada num conhecimento mais completo sobre quem realmente somos; desativar as emoções negativas (raiva, ódio, inveja, humilhação, medo, sadismo ou masoquismo) que irrompem em nosso cotidiano; nos sentir mais livres da culpa e da vergonha associadas aos nossos sentimentos agressivos ou inadequados; controlar nosso incessante medo da morte, expresso na obsessão pela saúde, dietas, exercícios físicos, medicamentos e longevidade a qualquer preço; diminuir nosso narcisismo; escapar das necessidades artificiais como o consumo exacerbado; usar nossa imaginação criativa (sonhos, fantasias, desenhos, rituais, textos, erotização) para aceitar e conviver ludicamente com a parte do nosso self outrora reprimida.


A Sombra, quando adequadamente percebida, é uma fonte de renovação criativa, é a porta para nossa individualidade.

Texto original de Nelson Prado Rocchi (psiquiatra e psicanalista de Campinas, SP), adaptado por mim.




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