terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Rumo ao sul da América do Sul (I)


Aterrisando no Rio de Janeiro, no Santos Dumont, já dava para ver a nave que me levou pelo sul do continente, o Golden Princess (109.000 toneladas), um dos melhores navios que conheci. 


Foi uma viagem de verão, mas com temperaturas que variaram do calor tórrido do Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevidéu, ao frio úmido do extremo sul da América do Sul.


Naveguei 8.470 km, ou 4.578 milhas náuticas.



O céu ficou parcialmente nublado, o que não diz muita coisa nessas latitudes altas, perto da Antárctica. Às vezes chove, outras vezes faz sol, apenas o vento forte e frio é constante, mesmo no verão. Hoje faz 12 ºC, mas o vento proporciona uma sensação térmica menor. A superfície do mar está suavemente encapelada, com ondas de um e meio a dois metros, o suficiente para balançar o leviatã de 109 mil toneladas. Sua proa imensa, arredondada e poderosa faz explodir algumas ondas e suas cristas se esparramam pelos lados do navio, fazendo com que os deques externos sejam interditados aos passageiros por causa da força dos ventos. 
 


A piscina com ondas é efeito das ondas que balançaram o navio, indo para Stanley (Falklands). 

O céu ficou uma formação nebulosa inconstante devido à velocidade do navio (18 nós) e aos ventos, que arrastam as nuvens pelos céus puros e fantásticos, apenas superados pela força ainda mais brutal dos elementos no vizinho continente Antártico. Desta vez não chegarei até lá, porém a aventura será suficiente. Visitarei as ilhas Falklands, que os delírios argentinos insistem em denominar de Malvinas, e atravessarei o temível Cape Horn, o Cabo Chifre, que no passado todos sabiam ser impossível de contornar por causa dos ventos insanos e da força titânica dos oceanos Atlântico e Pacífico que se encontram no extremo sul deste continente que meus colegas de viagem alienígenas chamam de exótico, sendo para mim simplesmente o ponto extremo de onde nasci e vivo muito bem.
 

Aí estou, em frente ao Cabo Horn, que circunavegamos. Era um dos lugares mais perigosos, com mais de mil naufrágio. Os ventos são violentos e gelados e as ondas podem atingir alturas de 3 metros.

Na área das Falklands, o mar é esverdeado, puro, frio, límpido e profundo (uns 4 mil metros de profundidade), pois as ilhas localizam-se há uns 1.300 km do continente e fora da plataforma continental.

A última vez que singrei essas águas foi a bordo do Marco Polo, em janeiro de 1999, rumo à Antárctica, sonho de minha vida de viajante e curioso sobre as coisas do mundo e dos humanos. Faz quinze anos que saí do Rio de Janeiro, como dessa vez, e fiz escalas em Joinville, Montevidéu, Buenos Aires e nas duas ilhas principais das Falklands antes de atravessar o estreito de Drake e chegar à Península Antárctica, o lugar mais estranho que já pisei neste planeta fabuloso. Daquela vez fiquei apenas uma hora no solo de Stanley, capital das ilhas, por causa de uma tempestade que nos fez levantar âncoras antecipadamente e mergulhar no estreito de Drake. Como geralmente acontece, o estreito não nos decepcionou com sua violência e beleza dos elementos naturais em fúria. Fiquei seis dias em meio a icebergs e terras rochosas geladas, deslumbrado com a natureza selvagem e intocada pelo ser humano. Na volta fiquei em Ushuaia, chegando no meu continente natal pelo sul, algo insólito. Depois fui à Bariloche, onde encontrei uma prima-irmã que morava na Argentina, para comemorar seus 50 anos de idade em festividades que duraram uns dez dias, deliciosos e memoráveis, juntamente com seu pai, o patriarca da família, recentemente falecido.
 
Dessa vez cheguei em Ushuaia pelo leste, vindo das Falklands e à bordo de um navio muito maior e mais confortável.  
      
O Golden Princess é um navio relativamente novo (2001), com 17 deques (na verdade são 16, pois como vários edifícios e navios ianques não possui o 13º andar, coisas das superstições contemporâneas), piscinas, jacuzzis, salões e varandas em muitos camarotes. É uma imensa massa de aço, vidro e espaços arquitetonicamente bem divididos, com 109 mil toneladas, 2.500 passageiros e 1.100 tripulantes. A Princess é uma empresa que trata melhor seus passageiros que a Costa ou a Carnival (ambas do mesmo grupo) ou a Royal Caribbean. Não chega a ser das mais luxuosas, como a Seabourn ou a Crystal Cruises, mas é bem legal,  especialmente a comida. De qualquer maneira esses navios estão a anos-luz de tecnologia, tamanho e conforto do navio onde comecei minha vida profissional, o português Funchal, com apenas 10 mil toneladas, mas com muitas histórias e memórias armazenadas em seu imaginário coletivo. 




O deck superior do navio ...


 ... e a popa monumental, com a piscina de adultos (eram duas, além de três piscinas para crianças e adultos).

O embarque no Rio de Janeiro foi lamentável, como também foi em Buenos Aires e seria em Santos (São Paulo), pois não existe infraestrutura nesses portos para receber os navios de cruzeiros marítimos que chegam aos mares sul-americanos no verão. No Rio, a temperatura estava 35ºC e o galpão velho adaptado para embarque é de metal, seu pobre ar-condicionado é insuficiente e o espaço exíguo. No pico do embarque várias pessoas (muitos idosos) tiveram que ficar na fila ao sol abrasador dos tristes e pretenciosos trópicos.




Tirei essa foto à bordo. Como já conheço a desgraça que são os embarques em Santos e Rio, fui em um voo mais cedo e cheguei com antecedência, então demorei "apenas" umas duas horas para embarcar. Tentei falar com o pessoal da Princess a bordo sobre o embarque, mas eles, corretamente, evitaram qualquer declaração e deixaram claro que o embarque é de total e exclusiva responsabilidade das autoridades portuárias. Claro que as pessoas de idade reclamaram do serviço péssimo e ouvi de alguns experientes viajantes que isso era típico da América do Sul e que não adiantava reclamar. Calei-me perante tais argumentos.

Em Buenos Aires os barcos ficam em um imenso terminal de containers, onde ônibus velhos e sem ar-condicionado fazem o transporte entre as naves e o terminal de passageiros. 


Esse é o porto de Buenos Aires...


Um contraste com a vista espetacular da cidade, que se tem na chegada.


Essa é a vista da popa, quando o navio está atracado em Buenos Aires.


E essa é a vista que se tem do navio, do alto de uma passarela de pedestres que dá acesso ao terminal marítimo.    

Em Montevidéu as gigantescas naves atracam em cais de concreto, ficando os passageiros expostos ao sol e à chuva, ao frio e ao calor. Coisas da América do Sul, que alguns gringos a bordo, bastante acostumados com as viagens internacionais, já conhecem e apenas encaram estoicamente os desconfortos.




 Cemitério de barcos, na entrada do porto de Montevidéu.




A entrada do porto de Montevidéu é estreita. Veja a distância que separa o Golden Proncess, do Empress (navio da Pullmantur) que chegou logo após do nosso.  

Mas, voltando a Buenos Aires, é uma capital austral belíssima e atraente, mesmo em tempos de crises. A queda da qualidade de vida e as dificuldades econômicas por que passam o país são indisfarçáveis. Na calle Florida, dezenas de subempregados oferecem seus serviços de câmbio negro para comprar dólares, euros e reais, evidências incontestáveis da falta de dividas que assola o país. Comprei poucas coisas nas Galerias Pacífico: alguns livros preciosos e uma meia térmica da Timberland que salvou meus pés na úmida friagem ventosa do sul americano.  




Zarpamos de Buenos Aires ao crepúsculo ...


... deixando uma cidade que sempre me encantou, desde que a conheci com apenas 16 anos de idade. 

Montevidéu é uma cidade menor, atualmente cara, também mal disfarçando suas dificuldades econômicas, porém com um astral reconfortante, em parte fruto de seu presidente idoso e bem resolvido com algumas coisas da vida como sexo e maconha. 
 


Uma desilusão foi ver a tradicional Casa Mário, uma loja de couros cujo proprietário tinha altas relações políticas e empresariais com as companhias de navegação, fechou há uns dois anos e descobri ao ver a fachada abandonada do prédio. 


Tivemos bons momentos no passado, quando trabalhei no Funchal, com o pessoal da Casa Mário. Da última vez que estive em Montevidéu, em janeiro de 2010, ainda os visitei.

  
A cidade ainda tem suas coisas arcaicas. Fui comer uma empanada e beber uma cerveja em um restaurante na área central e ao ir ao banheiro encontrei essas latrinas ortodoxas. Coisas platinas...

Voltei à livraria Verso Puro, um templo que guarda surpresas livrescas saborosíssimas. Comprei o roteiro do filme O conselheiro do crime e a peça de teatro The Sunset Limited, ambos de Cormac Mc Carthy, para mim um dos melhores escritores vivos norte-americanos, ao lado de Philip Roth.


A belíssima, sofisticada e erudita livraria Puro Verso. Pena que os livros estejam tão caros no Uruguai. Em Buenos Aires são mais baratos, mas pechinchas mesmo, só na Espanha.
Esse roteiro pelo extremo sul da América do Sul tem suas peculiaridades. É uma viagem confortável e tranquila, com muitos estrangeiros de outros continentes, em geral idosos e que já viajaram bastante. O navio larga dos trópicos escaldantes (Rio, Buenos Aires e Montevidéu) para as latitudes austrais que, mesmo no verão, são ventosas e frescas, até mesmo geladas. Suas atrações são a fantástica natureza selvagem de geleiras, montanhas, bosques e ilhas rochosas, além da gastronomia deliciosa de frutos do mar, carnes vermelhas saborosas (o cordeiro patagônico...) e vinhos. Para mim é um mundo quase perfeito, mas para muitos compatriotas o frio e a tranquilidade de bordo deixa a desejar, por isso que só havia uns 290 brasileiros a bordo. Em Buenos Aires embarcaram cerca de 450 argentinos, alguns para ver de perto sua ilusão geopolítica mais intensa e romântica, as ilhas Falklands, objeto da guerra de 1982, perpetrada pelo ébrio general Galtieri que com a derrota encerrou sua carreira de ditador canastrão e guerreiro boquirroto. A vitória custou muito à Inglaterra, pois os pilotos argentinos usaram competentemente seus mísseis franceses exocet na frota britânica. Porém o velho império monárquico prevaleceu sobre a ditadura retrógrada e até hoje crava sua bandeira sobre as ilhas. Seus habitantes, após uma recente votação, preferiram maciçamente continuar sob as ordens da Rainha do que sob o arbítrio de presidentas altamente discutíveis e pretenciosas. Eles não querem ser argentinos (nem uruguaios ou brasileiros), apenas desejam manter o status de colonizadores britânicos simples e agrários nessas rochas ventosas e monótonas do fim do mundo.   

O navio fundeado em frente à Stanley. Desembarcamos nos tenders (os barcos de resgate do navio).

Foi interessante comparar em dois dias consecutivos os efeitos da guerra de 1982, depois de 30 anos. Nas Falklands, há um monumento sóbrio para comemorar a vitória e um agradecimento tácito aos ingleses por terem livrado suas terras de um governo errático, invasor e destinado ao fracasso geopolítico.


Um pequeno monumento, com os nomes dos mortos...


... e uma frase curta, objetiva. A vitória foi dura, mas objetiva. A honra e a teimosia britânicas estavam garantidas. Recentemente um plebiscito perguntou aos habitantes das Falklands se eles queriam permanecer sob o governo britânico. 99,99% responderam que sim. São a quarta ou quinta geração de camponeses, a maioria oriundos do Reino Unido. Criam ovelhas, pescam, fazem um pequeno comércio. Vivem em umas ilhas planas, frias, rochosas e ventosas.   
 

 No pequeno museu de Stanley, há uma salinha dedicada à guerra. Acima, um dos exemplos da ridícula propaganda argentina direcionada aos habitantes. Escrita em espanhol...

Outro exemplo da fanfarronada militar é essa caricatura: um gaúcho monta o leão britânico para dominá-lo. Arrogance sucks...


A sóbria e fleumática resposta dos kelpers (habitantes das Falklands) está conservada na porta de um dos pubs de Stanley. Um agradecimento pela vitória e um convite para beber e cantar. That´s it.


Não dá para beber bem por uma guerra, ganha ou perdida. Bebe-se uma Guiness pela ilusão de um futuro de paz, compreensão, curtição, essas coisas que fazem uma vida saudável.  

Por outro lado, em Ushuaia, há uma imensa praça fantasiada de alegorias pretenciosas para comemorar a derrota e a morte, inútil, de centenas de jovens mandados sem preparo (com exceção da Força Aérea Argentina que arrasou) para um combate patético, como bem demonstram a péssima propaganda de guerra da ditadura argentina. Há um outro monumento desses em Buenos Aires, na praça ao lado da calle Florida, onde está a Torre da Aeronáutica Argentina, antiga Torre dos Ingleses... Ironias bélicas, teimosias regionais, patriotadas latinas.



Imenso, com centenas de nomes dos mortos, uma chama eterna em uma praça imensa, bela, cercada pelas montanhas da cordilheira...


... esse é o monumento comemorando os trinta anos da guerra, em Ushuaia. Uma derrota amarga.



 
Ushuaia é deslumbrante.  
   

Atracamos ao lado do navio Infinity, da Celebrity Cruises, que nos acompanhou boa parte do trecho entre Cabo Horn e o estreito de Magalhães. 

Naves de prazer, plataformas para se flanar e contemplar o mundo do ponto de vista do conforto insólito, nos mares bravios e na natureza selvagem.

Formosos, nos portos,...


... ou cruzando as águas que um dia foram apenas sonhadas por aventureiros.

Conversando com argentinos esclarecidos a bordo, fica claro que a questão das “Malvinas” é uma demagogia ainda vendida como algo sério por um governo populista e bastante criticado para as massas humildes e ignorantes. 


Navegamos pelos estreitos, ilhas e glaciares.


E a última parada no sul foi em Punta Arenas, Chile. Mas depois eu conto o resto...





2 comentários:

Mag disse...

Luiz,
Cheguei a sentir frio nas Falklands,sua narração faz o leitor se sentir no navio. Só não sei se o " suavemente encapeladas " me convenceu da suavidade delas !!!!! rsrsrs

BLOG DO BAGAÇO disse...

Viagem fantástica, superfantástica.
Conte mais pra gente ficar mais água na boca ainda!!!