sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Modernidade (Vintage, 1993)

Mexendo nas minhas coisas encontrei um caderno do Sinpro (Sindicato dos Professores de Campinas), de 1994. Foi um Encarte Especial, com os resultados do concurso de contos e poesias enviados pelos professores. Minha poesia, composta em 1993, ganhou o primeiro lugar. Aqui a reproduzo para vocês:

Modernidade

Sob o céu azul e o crepúsculo
um jato desliza pela pista e decola,
fuselagem prateada refletindo o sol. 
Sua sombra paira sobre as águas poluídas da lagoa,
cruza suas margens sujas, cobertas de detritos e barracos
que infestam os arredores do aeroporto. 

Meninos largados, pupilas subnutridas, olham o avião
desaparecer na direção do poente, rumo ao sol vermelho
que se funde no horizonte, ao lado da imensa chama da refinaria.

As luzes se acendem aos poucos, as sombras se alongam  e a cidade
inicia mais uma noite, excitante e brutal.
As avenidas congestionadas exalam CO2 e pressa. 
Os prédios transbordam pessoas que entram em metrôs, trens carros e ônibus
e desaparecem pelo complexo urbano da cidade 
em busca de uma noite suportável.

A casa,
a caça,
o caso,
o caos
o como gastar as horas livres presas à rotina do lazer cotidiano.

A atmosfera quente e úmida potecializa o clima de cio da noite
encantada pela ilusão do neon, dos sons, dos vidros imensos que refletem, frios,
os simulacros dos sonhos perdidos. 

O ar é salgado. Sal do mar e de suor,
suor de chopp e de corpos,
entrelaçados na cama de um quarto onde, pela janela aberta,
passam íncubos e súcubos deliciosos e malucos da noite em cio.

De madrugada os carros se estraçalham nos cruzamentos,
correrias e carreirinhas, vídeos e álcool, fumo e livros,
jogos e papos montam os cenários dos botequins, boites, bares e bordéis,
iluminados e incrustrados no mosaico colorido  e disforme das luzes amontoadas
em paisagens existenciais, 
do olhar perdido do garoto que brinca com um copo vazio, num balcão sujo,
no esmalte gasto da garota que se lava num bidê autoritário,
na corrente de ouro de um velho que dirige solitário e bêbado pela rua,
na luz fantasmagórica do vídeo que recorta as silhuetas do casal entorpecido
pelos anos inexoráveis na patética cidade,
entre misérias e luxos,
normalidades e trivialidades,
em um turbilhão de sensações e instintos ferozes
semi-domesticados e amortecidos. 

As luzes intensas dos prédios a beira-mar sobem os morros e se esparramam,
esparsas luzes embaçadas dos barracos pendurados, abandonados,
no limbo da civilização.

Sobre essas luzes as estrelas explodem, no sublime regaço da noite.
No horizonte as luzes de um avião se misturam às estrelas e 
uma estreita faixa avermelhada anuncia um novo dia. 
No frescor da madrugada, ao som da FM, um urro gerado no êxtase do orgasmo partilhado
celebra a vida e se vira, de lado, para dormir,
sob o céu negro e a lua. 

Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 1993



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