quinta-feira, 26 de março de 2020

Isolamento - a distopia tropical


Vivemos simultaneamente uma distopia, um tipo de experiência-limite e uma instabilidade política e social. 

A distopia veio na forma de uma pandemia não convencional. Não teremos lobisomens, vampiros, zumbis ou milhões de mortos em uma Terra devastada, mas um surto insidioso que mata pequena parte da população e deixa a outra parte com medo de ser "a próxima vítima". Uma roleta-russa perversa o suficiente para congelar a movimentação das pessoas nas áreas urbanas do planeta. Isso para os que entenderam a gravidade peculiar da ameaça (apesar de poucas mortes percentuais, é o suficiente para colapsar os sistemas de saúde e causar terror nas áreas mais infectadas). Para muitos isso tudo é bobagem e deveriam isolar apenas os grupos de mais alto risco como idosos e pessoas com doenças crônicas ou em estado imunolõgico depressivo (isolamento vertical).

Para os que podem - e aceitam - se isolar no conforto de suas casas e apartamentos abastecidos e seguros resta um problema cada vez mais comum: o que fazer no tempo livre? Como disfarçar o fato de que estamos presos por causa de um perigo real e invisível? Como viver sózinho, consigo mesmo? Como viver junto a pessoas que nada mais tem a ver consigo? Entre a solidão e "o inferno são os ouitros" parte da população se resguarda nos seus cocoons. A outra parte sai à luta por vocação profissional ou simplesmente para ter o que comer. 

A prisão domiciliar nem sempre é a placidez monótona, o tempo do ócio criativo ou a descoberta interior no estilo da Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre, escrito em 1872, durante sua prisão domiciliar.


Entre arrumar a casa, cozinhar, cuidar dos outros, se adaptar ao trabalho remoto (para aqueles conectados e empregados em lugares mais sofisticados), responder mensagens nas redes, se informar pelo noticiário intenso, ler algum livro, assistir filmes e falar virtualmente com pessoas que não víamos a tempos, o dia passa sem que o tédio contamine nossas vidas. Para os que não tem trabalho nem conexões, resta a solidão estéril se não estiverem acostumados a uma vida interior enriquecida por leituras, meditações, orações ou o prazer de estar consigo mesmo. Cada um atravessa esse período com suas possibilidades e carências, medos e virtudes.   

Esse tipo de experiência-limite (Quanto tempo durará o isolamento? Seremos contaminados?, Como ficará a economia em geral? Como ficará a minha economia?) afeta as pessoas de maneiras diferentes. Para as novas gerações fica uma dura lição de vida: precisamos sempre nos preparar para momentos difíceis provocados por crises individuais ou coletivas. Planejamento estratégico, informação, prudência e capacidade de ler cenários com lucidez são habilidades que devem ser desenvolvidas e praticadas se quisermos sobreviver às vicissitudes da vida. 

O pavor irracional. Ilustração de Estação Perdido, texto de China Miéville. 

No caso do Brasil temos outro problema que é a inépcia comprovada do presidente da República. Certamente ele é o pior mandatário do planeta em termos de incompetência, boçalidade e má-fé. Sua biografia é uma mescla de mediocridade, ressentimento e tacanhice. Mas ele está em um contexto do país no qual cerca de um terço da população o apoiou orgulhosamente, mesmo quando demonstrou algumas das qualidades mais desprezíveis do ser humano como machismo, racismo, misoginia e homofobia. Nesse contexto o Brasil vive hoje outra polarização: entre as medidas de isolamento social para conter a pandemia do Covid-19 e tentar "achatar a curva" do contágio e diminuir os efeitos desastrosos no sistema de saúde público e privado ou simplesmente suspender o isolamento, soltar o povo pelas ruas e ver no que dá. Morrem alguns milhares mas se perserva a economia. Só que isso é uma falácia, um engano, segundo vários especialistas em saúde pública e gestão de crises.

Essa polarização passa exatamente pelas características que marcam os últimos anos do Brasil: ascensão de um neoliberalismo selvagem, aumento dos discursos de ódio e medo, valorização da boçalidade e ignorância em detrimento das artes, ciências e cultura. Então os argumentos dos pesquisadores e profissionais da saúde, nacionais e estrangeiros, que propõe o isolamento são contestados por alguns políticos (a começar do presidente), empresários e investidores. Esses estão mais interessados na preservação do modelo econômico concentrador de riquezas do que em políticas públicas preventivas que cuidem da emergência epidemiológica, dos problemas nas redes de saúde causados pela eclosão da pandemia e TAMBÉM dos efeitos prejudiciais que a recessão econômica, resultante da paralização de várias atividades produtivas, trará para pessoas físicas, jurídicas e os Estados. Temos que pensar na saúde e na economia, necessariamente nessa ordem. Bill Gates declarou ontem que "será mais fácil recuperar a economia do que as vidas humanas". 

Evidentemente os empresários que sempre se lixaram para os direitos fundamentais dos trabalhadores(as) estão por trás dessas propostas que minimizam os investimentos públicos para conter a crise de saúde e a consequente crise econômica. Responsáveis de grupos empresariais como Madero, Havan, Centauro e do agrobusiness apoiaram Bolsonaro desde a campanha eleitoral e hoje protagonizam a defesa do egoísmo e da visão exclusiva de lucros em detrimento de uma visão sócio-política inclusiva, visando atenuar a crise para todas as classes sociais. Em meio à essa discussão iniciada no mainstream da comunicação (grande imprensa) surgem boatos, teorias da conspiração, fake news e outras bizarrices que infectam as redes sociais. Em um país marcado pela manipulação grosseira, pelos mercenários da fé pseudo-cristã e pelas milícias reais ou virtuais, aliado ao baixo nível de informação qualificada, o ambiente de notícias é mais letal que a pandemia virológica. 

Boa parte do mundo optou pelo isolamento social, o Japão cancelou a Olimpíada, centenas de eventos importantes foram cancelados ou postergados, quase 300 navios de cruzeiros marítimos estão parados, as companhia aéreas paralisaram milhares de jatos devido à falta de passageiros, várias cidades interromperam suas atividades para evitar aglomerações humanas, tudo isso para diminuir a probabilidade de contato e contágio. Mas o presidente e um grupo de "iluminados" entende que isso é bobagem. Sem falar do maior imbecil, Olavo de Carvalho, "guru" degenerado do bolsonarismo, que encara essa pandemia como uma mentira global para beneficiar determinados grupos.

Parte da classe média embarcou no fluxo malsão de bobagens ditas enfaticamente com rótulo de verdades absolutas e reproduz histericamente esse lodaçal, em um processo que vem desde 2013/2014, quando a racionalidade cedeu às paixões frustradas e aos ressentimentos cozidos no fogo brando da má-fe.



E agora?

Quanto tempo durará o isolamento? Como terminará a pandemia? Quais serão os efeitos na economia e na sociedade? Por hora não há respostas, apenas projeções, análises de cenários, especulações e palpites. O certo é que a peste pode gerar a fome e essa gerar a guerra social. Os quatro cavaleiros do Apocalipse são proclamados pelos falsos profetas para atemorizar e dominar parcelas da população, visando interesses financeiros e políticos futuros. No próprio discurso de alguns políticos e profissionais ligados ao combate da pandemia já se percebe laivos interesseiros visando um butim político ou mercadológico. Enquanto isso os profissionais sérios e dedicados da saúde e dos serviços básicos arriscam suas vidas para garantir o mínimo bem estar da população. Heróis e heroínas anônimos que garantem as bases da civilização.

Ilustração do livro Estação Perdido, de China Mieville 

Muitas respostas virão em duas ou três semanas. Especialistas afirmam que o pico da eclosão do Covid-19 no Brasil será mais ou menos entre 6 e 20 de abril. Segundo previsões teremos entre 5 e 7 mil mortos, colapso da saúde, milhares de pessoas internadas e uma realidade similar à que a Itália e Espanha vivem esses dias, com a diferença que o Brasil possui menos recursos tecnicos e financeiros, um número imenso de pessoas carentes morando nas ruas, favelas ou bairros superpovoados. Além de faltar uma liderança política consolidada, o que gera incerteza e especulações sobre impeachment, golpes ou ameaça de convulsão social e endurecimento do regime.

Logo veremos, talvez horrorizados, um cenário catastrófico, antecipado por cientistas e analistas qualificados. Algumas cidades como São Paulo constroem hospitais de campanha ou adaptam edifícios para receber doentes com sintomas leves do Covid-19, garantinto os leitos hospitalares convencionais para os doentes graves, além de investir na fabricação de máscaras, álcool gel e equipamentos médicos para atender a demanda emergente. São exceções. Boa parte do país está apenas esperando pra ver. Alguns entendem que o presidente oligofrênico tem razão em qualificar isso de "gripezinha" ou "resfriadinho". Alguns pastores neo-evangélicos embarcaram oportunisticamente nesse discurso para não perder o fluxo financeiro de suas igrejas, assim como alguns empresários interessados em manter seus lucros, não importa quantos morram. Afinal, velhos e doentes são descartáveis para quem tem uma visão egoísta do mundo. Esses egoístas são o lixo terminal de nosa civilização adoentada. 

Muitas dessas dúvidas serão esclarecidas em menos tempo que esperamos. A histporia está em pleno desenvolvimento. Os jogos mortais estão no início. 

Isole-se. Proteja-se. Não seja vítima da burrice alheia. 


  

segunda-feira, 23 de março de 2020

Isolamento - o cenário vai sendo construído (ou destruído?)



Há diferença entre isolamento obrigatório (sistema prisional, prisão domiciliar, quarentenas compulsórias, estado de sítio, ou por razões de guerras ou terrorismo) e o isolamento caracterísrico de algumas profissões como tripulantes de submarinos, navios cargueiros, plataformas de petróleo, bases na Antárctica ou outros lugares ermos, estação espacial etc. No segundo caso, essas tripulações são selecionadas, qualificadas e monitoradas por complexos sistemas de gestão e controle, além de lá estarem voluntariamente, seja por motivação profissional, financeira ou ideológica. 

Neste caso do Covid-19 estamos em uma situação inédita e com suas fronteiras de ameaças desconhecidas devido aos acontecimentos tão recentes. Esse isolamento é uma novidade para a grande maioria da população, estamos aprendendo juntos como agir nesses casos emergenciais . 

A doença é bem recente, foi identificada pela primeira vez em Wuhan, China, no início de dezembro de 2019 e reportada oficialmente em 31 de dezembro. A expansão pelo mundo foi rápida, graças ao sistema internacional de transporte aéreo comercial. No dia 25 de fevereiro apareceu o primeiro caso no Brasil; em 13 de março a pandemia chegou aos cem casos; em 17 de março houve a primeira morte e hoje são 1.891 casos e 35 mortos em nosso país. Os primeiros casos foram trazidos por pessoas que estiveram na Europa, América do Norte ou Ásia. O avião presidencial brasileiro, por exemplo, voltou dos Estados Unidos no início de março com 24 pessoas contaminadas. Dias depois a doença já era disseminada por pessoas que nunca estiveram no exterior, porém foi o sistema aéreo internacional que se encarregou da distribuição global do vírus, as usual.

 A comitiva presidencial contaminada à bordo do Força Aérea 1

Em 1998, Tom Clancy publicou o livro Rainbow 6 (que virou um game), sobre um grupo de eco-terroristas que planejam dizimar a raça humana para preservar o planeta da poluição e devastação. Manipulam genéticamente o vírus Ébola e planejam borrifá-lo no encerramento da olimpíada de Sidney, através dos condutos de ar-condicionado e refrigeração líquida aspergida no estádio. A lógica era que essas milhares de pessoas pegariam aviões para seus países e em cerca de 24 horas a maior parte do planeta estaria contaminada. O ambiente de aviões e navios, com seus sistemas de ar-condicionado e áreas completamente fechadas, favorece a disseminação de vírus. 


The game



The book

Em julho de 2018, estive no navio Rotterdam, da Holland America, no Atlantico Norte, cruzando de Boston até Rotterdam, passando pelo Canadá, Groenlândia, Islândia e Noruega. Viajei com um amigo que é médico epidemiologista, especializado em modelos estatísticos. Tivemos um surto de norovírus a bordo, uma doença tão específica de ambientes fecjados, como navios de cruzeiros, que nem meu amigo conhecia. Na época nada comentei nas redes sociais sobre a pandemia à bordo para evitar sensacionalismo desnecessário, mas estudos recentes sugerem que esses grandes barcos podem ser como "placas de Petri" (criadores de microorganismos para pesquisas em laboratórios) se a higiene não for rigorosa e permanente. O problema são ... os passageiros. Várias pessoas não obedecem às regras de higiene (lavar as mãos depois de ir ao banheiro e antes das refeições, algo simples) por vários motivos: são estúpidas, não acreditam na possibilidade desses surtos; são porcas, não estão acostumadas a uma higiene caprichada; possuem transtornos mentais devido a doenças ou idade e não conseguem entender os procedimentos básicos de limpeza; outros são canalhas mesmo e não sabem viver em comunidade. Em alguns raros casos, a própria companhia marítima é relapsa em questões sanitárias, por ganância ou má gestão. Por isso tudo é difícil garantir a completa segurança a bordo, haja vista a contaminação de Covid-19 no Diamond Princess que contaminou 712 passageiros, com 8 mortes em feveriro de 2020, nas costas do Japão. Outros navios tiveram casos a bordo e ficaram em quarentena por várias semanas. Hoje, os quase 300 navios de passageiros existentes estão parados pelos portos, aguardando o retorno das atividades após o final dessa pandemia, mas as empresas sabem que será uma retomada difícil e demorada.


Os bons tempos dos cruzeiros sofrem sua maior crise 

Uma matéria da revista Forbes mostra o drama vivido à bordo e o que se aprendeu com essa trágica experiência. 


E agora?

Quanto tempo ficaremos isolados? Ninguém sabe. Dependerá da evolução do surto da pandemia no Brasil. Na Europa os estragos são imensos especialmente na Itália, Espanha, Alemanha, França, Suiça, Reino Unido, Holanda e Áustria, países com maior número de casos, em ordem decrescente  

Se você quiser saber a evolução da doença a cada instante visite esse site:


Aí estão os dados do Covid-19, globais e de cada país, permanentemente atualizados.

Na Europa e Estados Unidos a situação é extremamente delicada, com exceção da Alemanha que possui um número bem menor de mortos (123), contra mais de 6 mil mortos na Itália, 2.200 na Espanha e quase 900 na França. Na Ásia a situação está mais controlada, especialmente na China,  país origem do surto, que teve o maior número de casos (81 mil) e 3.270 mortes, com decréscimo dos casos nos últimos dias que pode significar a superação da crise. A Coréia do Sul teve 9 mil casos e apenas 111 mortes. Os outros países asiáticos parecem ter maior controle sobre a crise devido às suas características políticas (são historicamente autoritários), à sua disciplina e organização social bem estruturada, pois já passaram por várias guerras e desastres naturais, têm consciencia de que a merda acontece (shit happens) e se preparadam para minorar e superar seus efeitos. 

Leia esse texto escrito pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e analise as características asiáticas que levam a um maior sucesso no combate ao vírus:


Quanto à África, pouco se fala sobre esse continente aqui no Brasil, mas os dados do site acima referido mostram que está em um processo inicial do surto.

No próximo post comentarei as análises sobre o tempo calculado que ficaremos em isolamento social ou quarentena. Já adianto que não há consenso entre os palpiteiros. 

Ótimo isolamento para vocês e aproveitem para aprender algo interessante,. Aprendam especialmente com essa crise, pois ela mudará o mundo como o conhecemos hoje.

Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 2020













sábado, 21 de março de 2020

Isolamento - Primeiras impressões


Tarde de sábado, segundo dia do outono, bebendo vinho branco e ouvindo Elis Regina. Sózinho e isolado fisicamente. Determinações da Quarentena (com maiúscula mesmo) que entrou em vigor hoje, em São Paulo. Um bom momento para voltar ao blog que abandonei há anos, quando migrei para o Facebook e o Instagram. A cidade está mais silenciosa, com poucos carros nas ruas e vias expressas. Uma atmosfera de irrealidade cerca as pessoas. Parece um ensaio, uma dessas loucuras esporádicas que afetam o país como greves, locautes, rebeliões, crises econômicas ou planos econômicos desastrosos, como o do Collor (1990), que confiscou dinheiro de todo mundo, de maneira inédita e inesperada, causando uma queda brutal de consumo. Ou o congelamento de preços no Plano Cruzado (1986), que causou desabastecimento e aumento de preços com ágio embutido. Claro que os mais jovens não se lembram e viveram os últimos trinta anos em um período de crescimento econômico e relativa estabilidade. As crises mundiais de 1997, 2001, 2008 e a instabilidade brasileira de 2014 em diante atrapalhavam a economia e a sociedade, mas nunca houve, desde a Segunda Guerra Mundial, um evento global que transtornasse tanto os países como o Covid-19, o novo Coronavírus. 

De repente estamos todos trancados no centro de um thriller inédito, insidioso e assustador. Não é uma guerra nuclear, não é um ataque alianígena ou terrorista, não é uma mudança climática catastrófica, é um ... vírus. Um dos organismos mais simples e minúsculos do planeta ameaça nossas poderosas civilizações e culturas, modos de produção e tecnologias de informação e comunicação. No mainstream das relações líquidas, hipermodernidades, delírios e modelos algoritmos complexos, o vírus se instala e contamina todo nosso mundo real, virtual e imaginário. Vírus são algum elo entre Eros e Tânatos, entre o tesão e a morte. Os outros 200 vírus da gripe, o HIV, o Ébola qeu o digam, especialmente o HIV., o HPV. 

Entramos em uma clausura, um retiro forçado, um encontro com a gente mesmo e as pessoas que moram conosco. Como moro só estou acostumado com isso, não estranho nada a não ser o fato que essa auto-intimidade é para as próximas semanas ou meses. Gosto de estar comigo. Investi muito dinheiro e conhecimento para me tornar uma pessoa tratável e agradável para mim mesmo. Alguns chamam isso de egoísmo mas é um pragmatismo utilitarista existencial, uma mistura saudável de Jeremy Benthan, Sartre e pitadas generosas de hedonismo. 

Como a garrafa de vinho aproxima-se do final e minhas sensatas lições de "se beber não tecle" continuam válidas, termino essa reflexão por aqui e volto em breve.

Quanto a você, fica em casa; não encha o saco dos outros, se estiver morando com alguém; aproveite essa reclusão para se conhecer melhor (tem suas vantagens, mas às vezes dói) e tente sobeviver com dignidade e equilíbrio emocional. Gosto da expressão jesuítica "afeições desordenadas", que são a origem de nossas mazelas e babaquices. 

Hasta la vista!




sábado, 1 de outubro de 2016

A sociedade pós-industrial e o profissional em turismo - 20 anos


Após meses sem nada postar, volto por causa de uma data significativa. No dia 01 de outubro de 2016 comemoro vinte anos da minha defesa de doutorado na Faculdade de Educação, na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Era uma terça-feira ensolarada, o meu orientador foi o Prof. João Francisco Régis de Morais e o dólar estava cotado a R$ 1,02. Bons tempos.  

O título da minha tese de doutorado é: Filosofia da formação profissional nas sociedades pós-industriais. Um olhar para além do tradicional: o caso do lazer e do turismo. O volume encadernado tem 250 páginas (só frente), uma boa parte já amarelada pelo tempo. A tese foi transformada em livro com o título A sociedade pós-industrial e o profissional em turismo, publicado em 1998, pela editora Papirus de Campinas. Depois de sete edições e mais de uma década sendo vendido, foi retirado do catálogo da editora, mas ainda pode ser encontrado em algumas livrarias virtuais. Está disponibilizado no Google Books:

https://books.google.com.br/books?id=OEjUnoD9gFkC&pg=PA71&lpg=PA71&dq=a+sociedade+p%C3%B3s-industrial+e+o+profissional+em+turismo&source=bl&ots=68FTc5eSWH&sig=P0NH1qEmt_fth1BjfdlSRU1BffI&hl=en&sa=X&ved=0ahUKEwiE_q_nla3PAhVBg5AKHbjJCtYQ6AEIHzAA#v=onepage&q=a%20sociedade%20p%C3%B3s-industrial%20e%20o%20profissional%20em%20turismo&f=false 


É um dos meus textos mais citados e conhecidos, além de ter sido um dos que escrevi com grande prazer e disposição. A defesa foi tranquila, a banca apreciou o trabalho e as críticas foram tão interessantes quanto os elogios.

Relendo o texto, tanto tempo depois, me dá prazer em perceber que a satisfação que tive no dia da defesa permanece forte e gostosa. Apesar de o turismo não ter se desenvolvido tanto no Brasil, especialmente nos últimos anos devido às crises econômica e política, vejo que o doutorado me abriu caminhos profissionais muito significativos. O Senac São Paulo me contratou para dirigir a então Faculdade Senac de Turismo e Hotelaria; a Univali (SC) me convidou para ser professor de seu jovem programa de mestrado em Turismo; a PUC-Campinas me promoveu a professor titular; fui o primeiro representante dos cursos de Turismo do país na Comissão de Especialistas do Ministério da Educação (1996). Finalmente, em 2005, passei no concurso público na EACH-USP, onde estou até hoje e pretendo ficar até me aposentar ou morrer, de preferência nessa ordem...

Uma característica do doutorado é que tive liberdade absoluta para o tema e o estilo de redação da tese, graças ao meu orientador. Continuei a linha de pesquisa do meu mestrado (sobre a pós-modernidade), fiz algumas viagens aos Estados Unidos para preparar o projeto e me programei para articular minhas duas atividades profissionais com as missões do MEC e as tarefas do doutorado. Foram anos intensos e muito produtivos. Viajei pelo país todo, testemunhei o crescimento da área e aumentei os contatos internacionais me filiando à AIEST, onde fiquei até 2007. 

Relendo a tese e o livro, vejo que as sugestões decorrentes da pesquisa continuam válidas. A ideia era analisar a realidade regional e global, no setor de serviços em geral e de turismo, em particular. A partir dessas análises, tracei uma agenda de sugestões para embasar o ensino de turismo e hospitalidade ao nível superior, no Brasil. Uma das citações de abertura foi do Iván Izquierdo, uma frase que, infelizmente, continua vigente no Brasil:

"A luta, é claro, é contra a burrice, e contra todos esses males que dela derivam: a intolerância, a tacanhice, o extremismo, a crueldade." (Ivan Izquierdo, 1995)

As recomendações gerais para se ensinar nas áreas relacionadas a viagens e turismo foram resumidas nos seguintes tópicos:

1. De acordo com pesquisadores já considerados clássicos (escreveram textos importantes na década de 1990) como Jafari e Brent Ritchie, um ponto inicial para a formação profissional em turismo é que esse deve ser ensinado de maneira transdisciplinar.



2. O turismo é uma especialidade no extenso campo das ciências.



3. A formação profissional em turismo realiza-se no contexto das mudanças globais e regionais.



4. Ao nível acadêmico, uma reflexão sobre o ensino superior deve ser centrado na educação integral (caracterizada pela diversidade, pensamento crítico, reflexivo e fundamentado historicamente) e não apenas em treinamentos de habilidades e competências "turísticas".

5. A educação em turismo ainda possui vários problemas a serem  equacionados, mas evoluiu consideravelmente em sua curta história acadêmica.

6. Ainda há resistência à compreensão de que a elevação da qualidade dos serviços turísticos, dos padrões de segurança, lucratividade e eficiência, dependem em boa parte de formação profissional séria e continuada.



7.  É necessária a colaboração entre as instituições educacionais e o mercado (o trade, em geral) para que o nível de ambos sempre possa ser aprimorado.

8. O mundo virtual (computadores, redes, portais, aplicativos...) é um facilitador do aprendizado e de outras atividades humanas (profissionais, lúdicas, artísticas, culturais..).


9. A educação deve se centrar na capacidade do indivíduo pensar e se expressar claramente, resolver problemas e tomar decisões.

10. A educação de qualidade é fundamental nas sociedades hiper-modernas (atuais).



 11. A perspectiva humanista é fundamental na formação profissional, o ser humano é mais importante que capital ou tecnologia.



Somos trabalhadores do conhecimento. Fazemos parte de um setor sofisticado, diversificado, complexo, altamente competitivo e sujeito a mudanças periódicas. Por isso uma das outras citações preferidas é:

"Se a mudança é apenas outra palavra para aprendizado, então, as teorias de aprendizagem deveriam ser também teorias de mudança" (Charles Handy, 1990).


Finalmente, ontem, 30 de setembro de 2016, ganhei a menção de "Pesquisador Destaque 2016" da ANPTUR - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo, no Seminário anual realizado em São Paulo.

Reproduzo aqui o agradecimento que postei no facebook:

Agradeço aos membros da comunidade da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo, que, neste XIII Seminário, realizado na Assembleia Legislativa de São Paulo, me concederam o honroso título de Pesquisador Destaque 2016. Foi um prazer ainda maior ser distinguido neste evento juntamente com o amigo Luiz Octávio de Lima Camargo, homenageado como Pesquisador Emérito. Ao longo dessa longa trajetória acadêmica agradeço às instituições que edificaram minha carreira profissional e pessoal: Senac São Paulo (onde fui aluno do curso Técnico em Turismo em Campinas e, muito tempo depois, Gerente Corporativo de Turismo e Hotelaria); Pontifícia Universidade Católica de Campinas (graduado em Turismo e Filosofia, mestre em Filosofia e professor, de 1988 à 2007) ; Universidade Estadual de Campinas, onde defendi o doutorado em Educação; Universidade do Vale do Itajaí, onde fui professor do programa de mestrado; Universidade de São Paulo (Livre Docência pela ECA, em 2003, professor desde 2005, tendo chegado a Titular em 2011). Entendo que esse reconhecimento não é individual, mas remete às pessoas que participaram dessa longa jornada, desde colegas professores, alunos(as), funcionários(as) e parceiros nas diversas atividades realizadas. Agradeço também aos votos de felicitações dos parentes, amigos e todos que acompanham meu trabalho. Que eu seja cada vez mais capaz de discernir os caminhos da minha existência e colabore para a formação de um mundo mais justo, pleno de conhecimento, paz e tolerância. Esse me parece o melhor sentido e significado do conhecimento.

As comemorações dos vinte anos de doutorado foram completas.





terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Nossos tempos (poesia livre)


"e tal assim sucedeu em dias que já não vemos

porque o tempo é isso, é isto:

àquilo que já não se vê não podes chamar presente

- é memória ou futuro, invisibilidade portanto."

Gonçalo M. Tavares, 2014
Os velhos também querem viver, p. 11





Nossos tempos
 

Luiz G. G. Trigo, 2016


Muito se fala, se escreve, se posta, se vocifera...

Mas pouco se reflete, se escuta, se estuda e compara.

Há poucos pensamentos complexos, profundos, estruturados de maneira aberta
e articulada.

Há gritos, interjeições, memes, charges, textos curtos e diretos, rasos e estéreis
de baixa fecundidade existencial, intelectual ou espiritual.

Há rezas, pragas, conjuros, lendas, superstições, maldições e bênçãos artificiais.

Chatices, mimimis, picuinhas, teimosias e ciúmes.

Amarguras, gracinhas, calúnias, ofensas, ressentimentos, humores, má-fé,  piadas e gracejos.

Há um cipoal, um amálgama, um enredar intrincado de nós cortantes, mas muitos veem apenas como um jardim ou uma selva. Poucos veem “muito além do jardim”. Poucos entram “no coração das trevas”.  Muitos correm atrás de um sol fantasma de uma galáxia distante...

E muito se fala, se escreve, se posta, se zurra...

Se murmura e se sussura em "versos e trovas",

entre gritos e certezas caducas de ética e estética.

Assim o mundo líquido dissolve antigos temores e amores,

as mudanças assolam e assanham e solapam as fundações do universo e a infância humana atinge seu ápice telúrico, numa espetacular e lipovestkyana mescla entre tecnologia, arte, inconsciência e instinto. 

Enquanto falamos, postamos, rangimos os dentes e gargalhamos para nós mesmos....






domingo, 10 de janeiro de 2016

Regulamentação profissional em turismo – um erro histórico




Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 2016

Os cursos superiores em turismo no Brasil surgiram a partir de 1971. Logo depois veio a ideia de conseguir a regulamentação das profissões ligadas ao turismo (turismólogo), um projeto de lei barrado pelo presidente da República, no início da década de 1980. Um outro projeto foi estruturado, mas também não foi sancionado por Fernando Henrique. Outras tentativas tampouco prosperaram no governo Lula. Em janeiro de 2009, a presidenta Dilma sancionou uma lei regulamentando a profissão de turismólogo (e outra ei regulamentando as profissões de barbeiro, cabeleireiro, manicure...) que é absolutamente inútil. Qualquer um pode trabalhar em turismo, assim como cortar cabelo, fazer unhas e similares. Ela assinou pressionada por um lobby pequeno mas insistente e o fez provavelmente para encerrar um assunto menor. A finalidade desse texto é explicar, mais uma vez, porque essa é uma ideia pequena, inútil e prejudicial ao turismo com um todo. 

Na época já comentei sobre isso nesse mesmo blog:


Em suma: a tentativa de regulamentação das profissões ligadas ao turismo foi um erro histórico, algo que virou fantasia na mente de algumas pessoas até ser finalmente abandonado pela maioria dos acadêmicos e profissionais.

Mas porque foi um erro?

  1. A área de turismo envolve vários setores profissionais (eventos, hospitalidade, agências, operadoras, transportes, cultura, esportes, entretenimento, alimentos e bebidas, lazer...), sendo impossível regulamentar todos eles em nome de um único profissional, o turismólogo;
  2. A profissão não é regulamentada em nenhum lugar do mundo justamente por isso. As exceções são do guia de turismo (em alguns lugares) e de atividades específicas como confeiteiro e similares;
  3. O Brasil possui cerca de 60 profissões regulamentadas. Veja todas no site do Ministério do Trabalho e Emprego, na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Aliás, várias atividades de hospitalidade, transportes, lazer e turismo estão devidamente relacionadas na CBO.   
Muitas dessas profissões regulamentadas são propostas estranhas como repentista, motoboy, pescador, enólogo, garimpeiro, peão de rodeio, empregado doméstico e outras não garantem inserção no mercado de trabalho;
  1. A maioria das profissões não precisa de regulamentação, as exceções óbvias são a área da saúde e áreas que oferecem perigo como engenharia, arquitetura e atividades técnicas altamente especializadas;
  2. Por trás dos pedidos de regulamentação paira um sentimento nefasto de “proteção”, de reserva de mercado, de certas garantias legais que protegeriam o profissional não importando muito sua capacidade técnica, e eficiência;
  3. Muitas áreas importantes como marketing, informática, jornalismo e meio ambiente também não são regulamentadas devido ao seu vasto campo de atuação. Recentemente a profissão de jornalista foi desregulamentada justamente por ser muito abrangente e diversificada.



A mente é como um paraquedas. Ela não funciona a não ser que esteja aberta...

No caso de turismo, a maior parte dos estudantes, acadêmicos e profissionais entende essas questões e não mais se preocupa com o antigo mito da regulamentação que ficou abandonado nos becos da história. O problema é que algumas poças estagnadas dessas ideias obsoletas sobreviveram e às vezes reaparecem como uma improvável saída para as dificuldades profissionais. Ou como um choro antigo, marcado pelo desejo preguiçoso de ter garantias legais exclusivas para exercer uma atividade. Por isso é importante que a sociedade e o mercado saibam que há uma consciência madura e lúcida por parte da maioria dos profissionais. A proposta de uma reserva de mercado, ou uma regulamentação do profissional em turismo, não mais está na agenda da grande maioria das pessoas que acompanham a evolução do setor e pensa o futuro da área de maneira estratégica e articulada.

Mas quem é a minoria que ainda insiste nessas ideias exóticas e fora do contexto atual da profissão e de sua formação profissional?

Há os poucos românticos e idealistas, até bem intencionados, que sonham com algo de sua juventude ou ainda imaginam que uma “regulamentaçãozinha” garante alguma coisa nesse mercado tão caótico e mutável onde vivemos, seja no Brasil ou no mundo;

Alguns professores, menos conectados com as redes de ensino mais informadas, insistem em iludir os alunos(as) com promessas irreais e objetivos inúteis, ou querem garantir vagas pagas em algumas escolas particulares que perderam seus alunos, muitas vezes devido à sua péssima qualidade;

Profissionais ou acadêmicos mal sucedidos que sonham com a miragem da regulamentação como um bálsamo universal contra seus males e dificuldades;

Demagogos e populistas que têm como única bandeira política a ilusão da regulamentação profissional.

O problema é que as pessoas não percebem que insistir nessa ideia absurda prejudica a imagem da área de turismo e passa a visão errônea de que seus profissionais são alienados e complacentes com a seriedade profissional. Há muitas histórias constrangedoras envolvendo a “causa”:

Recentemente uma pessoa defendia veementemente a regulamentação, no facebook, em um texto cheio de erros de português, com argumentos confusos e argumentos incoerentes. Isso compromete a seriedade de uma área que demanda um curso superior e, consequentemente, exige o uso da norma culta;

Às vezes o tema volta com outras roupagens, mas no geral não há novos argumentos, há não ser o mimimi lamuriento tradicional. A confusão é incentivada por pessoas fora dos debates realmente importantes que envolvem a qualidade dos cursos de graduação, a internacionalização das pesquisas e procedimentos empresariais, a necessidade de exigências éticas e de sustentabilidade por parte dos profissionais etc.

Se quisermos que as profissões ligadas ao turismo sejam reconhecidas pela sociedade e pelo mercado, temos que incentivar a boa formação profissional. Se for para fazer uma carreira sólida na academia, é necessário que as pessoas façam um mestrado relevante e depois, se continuarem na vida universitária, é importante um doutorado. Nos setores público ou privado, é preciso que os profissionais tenham formação continuada, falem uma ou duas línguas estrangeiras, estejam familiarizados com o estado da arte de sua atividade profissional e tenham cultura geral sólida e articulada com seu campo de atuação. Consciência ética, de inclusão social e sustentabilidade (natural e cultural) são igualmente exigidas.

O setor de cruzeiros marítimos oferece interessantes possibilidades de trabalho  

Finalmente, a partir de 2011/2012, o universo dos cursos de turismo diminuiu significativamente, o que foi ótimo para a área, pois boa parte dos cursos não tinham a mínima qualidade e formavam profissionais aquém das exigências da sociedade e do mercado. Em compensação surgiram ouros cursos de eventos, gastronomia, hospitalidade, lazer e áreas afins que ajudam na formação profissional específica nos diversos segmentos de viagens, turismo e hospitalidade.

A área se amplia e exige mais profissionais, só que com alta competência intelectual e técnica (apesar de pagar baixos salários, a exemplo de muitos outros setores). Vivemos um mundo completamente diferente do início do século 21, haja vista as mudanças radicais e preocupantes que abalaram o planeta, desde as crises econômicas, novas ondas de terrorismo, mudanças climáticas, novos mercados e segmentos, tecnologias inovadoras, marketing viral e redes de acesso informatizadas e customizadas. É um mundo novo em muitas dimensões e ainda tem gente que ainda vive nas práticas obsoletas do século XX, como os que defendem regulamentação de profissões.

As pessoas deveriam ler autores como Peter Drucker, Gilles Lipovetsky, Joshua Ramo, Thomas Friedman, Pine II e Gilmore, Ram Charan, Frédéric Martel, Pierre Levy e outras dezenas de analistas, prestando mais atenção às mutáveis realidade nacionais e internacionais. Isso ajuda a sepultar de vez o passado rançoso e a se preparar para os interessantes e instigantes desafios do presente e do futuro.


Para conhecer mais a história do problema

Os cursos superiores e de nível médio em turismo surgiram, no Brasil, no início da década de 1970. Foi uma opção particular nacional porque, em outros países do mundo, “turismo” está geralmente vinculado a outras áreas do conhecimento como geografia, economia ou administração e, em sua maioria, são cursos de nível médio ou tecnológico. Essa opção educacional manteve-se e foi aprofundada nos últimos anos. Em meados da década de 1990, com a expansão dos cursos superiores viabilizada pela política educacional do ministro da educação Paulo Renato de Souza (governo Fernando Henrique Cardoso) e mantida no governo Lula, o número dos cursos de turismo aumentou para cerca de quatrocentos em todo o país.
            O setor acadêmico é uma importante vertente do turismo. A área acadêmica cresceu significativamente desde meados da década de 1990. Houve uma expansão quantitativa de cursos (técnicos, tecnológicos e bacharelatos) que, infelizmente, não foi acompanhada por um incremento de qualidade. Na verdade, o segmento de cursos de turismo foi o que mais cresceu no Brasil, mas outras áreas também tiveram crescimento significativo. O quadro abaixo reflete a comparação entre o início da década de 1990 e o início do ápice do aumento da oferta de cursos de turismo, em 2002.

Quadro 1  - Número de cursos – Ensino superior (graduação) no Brasil

Áreas                          1991                2002                % de crescimento

Turismo                       28                    396                      1.314,3
Comunicação social    82                    478                         482,90
Engenharia                   149                  809                        443
Fisioterapia                    48                    255                      431,3
Ciência da computação  59                    272                      361
Fonte: INEP/MEC

Em 2006, segundo Carvalho (2008), existiam no Brasil 486 cursos de turismo. Somando todos os cursos da área de turismo (Administração de Eventos, Administração em Turismo, Administração Hoteleira, Gestão do Lazer, Gastronomia, Hotelaria, Hotelaria e Restaurantes, Eventos, Lazer e Turismo, Planejamento e Organização do Turismo, Recreação e Lazer, Turismo, Turismo e Hotelaria, Viagens e Turismo) esse número chegou a 710 cursos, um número absurdo.
São números estimativos. Em um país com a dimensão territorial do Brasil, onde universidades podem criar cursos sem autorização do Ministério da Educação e cursos podem ser descontinuados também sem autorização, é difícil ter um número preciso de cada curso, mas pode-se ter estimativas aproximadas.
Analisando o Quadro 1 percebe-se que os cursos de turismo tiveram um crescimento cerca de duas vezes e meia maior que o segundo curso em expansão (Comunicação Social). Houve um “inchaço” no número de cursos, que pode justificar, pelo menos em parte, muitos dos problemas existentes como perda de qualidade (a maior parte desses cursos não tinham condições de garantir um aprendizado minimamente eficiente), esvaziamento dos cursos, saturação do mercado, professores mal qualificados para o cargo.
O setor de pesquisa também teve um crescimento considerável, porém melhor organizado, pois a área de pós-graduação é estruturada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ligada ao Ministério da Educação. A falta de qualidade nos cursos superiores em geral, e de turismo em particular, foi analisada em um texto intitulado A importância da educação para o turismo, publicado por Luiz G. G. Trigo, no livro Turismo – Teoria e Prática, de Beariz Lage e Paulo Milone (São Paulo: Atlas, 2000), onde fica evidente que esse “inchaço” dos cursos teria vida curta e conseqüências funestas para a área, implicando em fechamento de cursos em grande escala nos próximos anos. Foi exatamente o que aconteceu a partir de 2008-2010. Vários cursos superiores de turismo foram descontinuados por falta de alunos e, por ouro lado, muitos cursos foram abertos em instituições de ensino superior públicas, estaduais e federais. Isso garantiu um novo patamar de qualidade na área privilegiando a pesquisa, o ensino de qualidade e o contato da área de turismo com áreas afins (meio ambiente, gestão, geografia, estudos sobre a sociedade etc.).  Nessa nova fase do turismo, onde a área se insere em um contexto maior da hospitalidade, gastronomia, entretenimento, eventos, varejo, cultura etc., fica também evidente que uma suposta regulamentação da profissão de turismólogo perdeu o sentido e o significado nessa nova configuração educacional e no mundo do trabalho. 

 Gastronomia é atualmente (2016) um dos cursos mais procurados. Ninguém pensa em regulamentar essa profissão.

A regulamentação é uma bandeira ultrapassada. Na década de 1980, houve uma grande movimentação nacional para que a profissão fosse regulamentada. No Congresso dos Bacharéis de Turismo realizado em 1983, em Brasília, foi entregue uma solicitação ao presidente da Câmara dos Deputados, deputado Ulisses Guimarães, para que encaminhasse a aprovação do projeto de regulamentação. O projeto, aprovado pelo Poder Legislativo, foi vetado pelo então presidente João Batista Figueiredo, no final de 1983. Para se ter uma visão mais completa do histórico das tentativas de regulamentação da profissão consulte o livro Turismo – formação e profissionalização, da Profa. Marlene Matias (São Paulo: Manole, 2002). A única categoria “regulamentada” na área é a de Guia de Turismo (Lei n. 8.623/93, regulamentada pelo Decreto n. 946/93), e, mesmo assim, não aparece no site do Ministério do Trabalho e Emprego como categoria devidamente regulamentada. É uma regulamentação fake.
            Ao longo dos últimos anos a discussão sobre a regulamentação profissional em turismo deixou de ser prioridade para o setor e, muito esporadicamente, volta ao debate em virtude de iniciativas de alguns políticos, estudantes ou professores. Esse assunto é ignorado pelo setor empresarial e pela maior parte da academia.

As origens da regulamentação na Antiguidade

Na obra de Antonio Santoni Rugiu (Nostalgia do mestre artesão, Campinas: Autores Associados, 1998), segundo comentário do Prof. Ilacyr Luiz Guadazzi, encontra-se a informação de que as Sociedades dos Artesãos surgiram para congregar profissionais ligados a uma arte ou ofício. Elas conseguiram, das autoridades, prerrogativas especiais como o “direito de livre trânsito”, “direito de estudar e ensinar” e o importante “direito de vender sua produção ou conhecimento”. As origens dessas corporações de ofícios estão envoltas em ares místicos, surgindo por meio de confrarias ou irmandades no final da Idade Média (século XII) e consolidando-se no século XIV. No início do século XIX elas começam a perder forças quando o desenvolvimento das artes, da ciência e das novas práticas comerciais tornam inviável o sistema de corporações de autoproteção. 

 As feiras medievais congregavam vários ofícios e atividades

            Para garantir sua unidade, autonomia e interesses, essas entidades adotavam cerimônias de iniciação para os aprendizes, saudações e sinais de identificação entre os membros, além de uma série de normas para disciplinar o relacionamento dentro e fora dos grupos. A Maçonaria, por exemplo, teve em suas origens a influência dessas corporações medievais, o que remete ao misticismo que permeava essas organizações. Na fase de declínio dessas corporações já não havia mais mistérios e segredos profissionais a serem guardados, apenas os privilégios e conquistas conseguidos ao longo dos séculos e que se perdiam, aos poucos, frente ao capitalismo industrial que surgia com novos desafios de mercado, novas formações sociais e inúmeras fontes inéditas de conhecimentos na história da humanidade. O mundo começava a se tornar mais complexo e competitivo.



 As corporações de construtores, pedreiros, carpinteiros e ferreiros eram importantes

O campo do trabalho relacionado ao turismo

Turismo relaciona-se com um campo mais amplo que envolve hotelaria, gastronomia, hospitalidade, lazer, entretenimento, meio ambiente, mídia, cultura em geral. São atividades do setor de serviços, exatamente o setor que, juntamente com as chamadas “novas tecnologias”, caracterizam as chamadas sociedades pós-industriais, ou da informação, da experiência, do conhecimento, do acesso ou o nome que se queira dar a elas, de acordo com o teórico escolhido entre as dezenas que analisam as formações sociais contemporâneas. Esses setores não precisam de “regulamentação”, mas sim de organização que garanta um alto nível de formação profissional, segurança e qualidade às suas atividades. Algumas atividades podem ser regulamentadas de alguma forma, porém os profissionais precisam de competência expressa por eficiência e eficácia no exercício de seu trabalho e não uma burocrática e ineficaz “regulamentação da profissão”. Inserção e sucesso profissional não são garantidos pela regulamentação e nem mesmo exclusivamente por um curso superior.
                       
A junção educação-trabalho no mundo atual

Um dos problemas do turismo internacional é a garantia de altos índices de desempenho e qualidade, eficiência e eficácia, possibilitados por bons programas de educação e treinamento. Os países que possuem melhores índices de qualidade em seus serviços turísticos são justamente os países que têm investido em educação e formação profissional como a União Européia, a América do Norte, os países asiáticos em geral e alguns poucos países islâmicos (dos quais os Emirados Árabes Unidos estão despontando como referência turística no Oriente Médio). Em nenhum país do mundo existe uma profissão de “turismólogo” ou similar regulamentada. Porém a qualidade dos serviços é mantida graças à regulamentação de algumas atividades profissionais, a um eficiente e rápido sistema legal de proteção ao consumidor, ao alto nível de consciência e ética profissional e a um sistema educacional sólido, desde o nível básico até o nível superior. Evidentemente esses países ainda possuem políticas fiscais razoáveis, ausência de burocracia estatal e políticas de desenvolvimento que garantem aportes de capital nacional e estrangeiro, situação bem diferente da vivida pelo Brasil no período entre o final do século XX e início do XXI.
           
Com base nessas considerações, fica evidente que a solução para a profissionalização do turismo no Brasil não passa, necessariamente, por uma simples e burocrática “regulamentação”. Ela é insuficiente para resolver os problemas da área.
É preciso entender que o turismo é muito mais do que o senso comum ou o pensamento convencional pensam a seu respeito:

  1. O turismo é um agente ativo do processo de globalização, com todos os pontos positivos e negativos que esse processo comporta, influenciando e sendo influenciado por ele.
  2. O turismo faz parte de uma série de serviços complexos, multifacetados e sofisticados presentes nas sociedades pós-industriais como hospitalidade, entretenimento, gastronomia, cultura, lazer, esportes etc.
  3. O turismo depende de conhecimento e padrões elevados de qualidade que, por sua vez, só são possíveis se houver pessoas que possuam preparo intelectual e técnico suficiente para manter esses padrões.
  4. O turismo depende de um pensamento aberto, dinâmico e global. Quem trabalha com turismo não pode ser preconceituoso, machista, racista ou xenófobo.
  5. O Brasil precisa continuamente se abrir para o mundo, evitar nacionalismos prejudiciais e se inserir, de maneira crítica e madura, no processo de globalização.
Cidades mais complexas e com grande oferta de atividades ligadas ao lazer, turismo, entretenimento, cultura, esportes etc. são novos desafios profissionais

Em um mundo cada vez mais interligado e conectado, os estudantes e profissionais em turismo precisam ser mais internacionalizados. O nacionalismo exacerbado é pernicioso ao humanismo em geral e ao turismo em particular. A União Europeia só se desenvolveu plenamente (apesar das crises econômicas setoriais) depois que controlou os sentimentos isolacionistas de seus países membros e se voltou para um cenário internacional mais amplo.
            O turismo pode – e deve – ser uma fonte vivificadora dessas relações humanas culturais, políticas e econômicas, nacionais e internacionais. Somos o novo, algo inédito em um mundo que se transforma. Precisamos de teorias e práticas realmente inovadoras, pois trabalhamos com realidades diferentes.
            Não podemos nos prender ao lodo estéril das ideologias mortas e nem dos tribalismos excludentes.