sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

São Paulo: utopias, distopias e neuroses urbanas.



Nos últimos anos da última ditadura militar brasileira (1964-1985), em plena ressaca econômica após as promessas frustradas dos anos dourados de prosperidade econômica, surgia uma das primeiras distopias brasileiras. O romance Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (lançado em 1981), desenhava uma estranha e inédita imagem de um país arruinado e caótico, situado em um futuro próximo. A ditadura militar, em seu auto-celebrado Milagre Brasileiro da década de 1970, propunha um futuro glorioso de um Brasil que mostrava sua força sendo tricampeão de futebol (1970), campeão de Fórmula 1 (com Emerson Fittipaldi), detentor de mulheres maravilhosas que conquistavam troféus de miss universo e que se fechava na sua imensidão cabocla e semi-rural, em busca de sonhos satisfatórios e glamours urbanos, especialmente no sul-sudeste maravilha.  


Em meados dessa década de 1970, a primeira grande crise mundial do petróleo acabava com os sonhos nacionalistas e megalomaníacos dos militares brasileiros e dos seus tecnocratas plenos de pretensa sabedoria. O irônico é que a origem daquela crise era o aumento dos preços dos barris de óleo. Atualmente, em 2015, a preocupação dos países em desenvolvimento produtores de óleo é justamente o baixo preço desses mesmos barris, pois diminui a entrada de divisas e causa instabilidades econômicas como na Rússia, Venezuela, Brasil... 

Os anos 1970 em 1980 foram de crises cíclicas, inflação, desemprego e carestia. Nesse contexto Brandão descreve uma realidade brasileira ficcional nos seguintes termos: “Lembra quando líamos os livros (de ficção científica) de Clarke, Asimov, Bradbury, Vogt, Vonnegut, Wul, Miller, Wyndham, Heinlein? Eram supercivilizações, tecnocracia, sistemas computadorizados, relativo – ainda que monótono – bem-estar. E aqui, o que há? Um país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica. Sempre fomos um país incoerente, paradoxal. Mas não pensei que chegássemos a tanto. O que há em volta de São Paulo? Um amontoado de acampamentos. Favelados, migrantes, gente esfomeada, doentes, molambentos que vão terminar invadindo a cidade. Eles não se aguentam muito além das cercas limites. Não há o que comer!” (pág. 92-93)


A cidade de São Paulo é a estrela decadente do romance. Um ar seco, quente, malsão, paira sobre a imensa mancha urbana onde o verde foi exterminado devido às sistemáticas agressões contra o meio ambiente. O discurso ufanista enaltecia a potência e majestade da locomotiva brasileira, São Paulo arrastando o país, com sua economia e vontade pétrea de vencer. Atrás vinham, a reboque, os vagões da Federação, dos mais nobres aos mais simples e acanhados. O que restou desse delírio são problemas toscos, um caos a mais no cenário nacional, uma cidade tão miserável e violenta como qualquer dos rincões desprezados, distantes apenas no geo-imaginário dos filhos bastardos dos barões quatrocentões.   

São Paulo é um oximoro urbano pós-industrial.

As críticas contra os desvarios da ditadura não eram exclusividade dos escritores, músicos e jornalistas. O humor denunciava e ridicularizava os laços emotivos, piegas e edulcorados de um regime decadente e atavicamente jeca. Em junho de 1969, surgia no Rio de Janeiro O Pasquim, um jornal alternativo que atingiu a tiragem de 20 mil exemplares em todo o Brasil. Tornou-se o principal veículo crítico ao regime militar e marcou uma época crítica da repressão política e da abertura gradativa rumo à nova democracia. 

Em São Paulo, um marco foi o surgimento do Circo Editorial, em 1984, que lançou charges, histórias em quadrinhos e uma estética urbana paulistana saída dos traços de Angeli, Chico Caruso, Glauco, Laerte, Luiz Gê, Paulo Caruso e Alcy. A série em quadrinhos Os piratas do Tietê, destila uma violência absurda e surreal, tendo como eixo cênico principal as águas mortas do rio Tietê. “Cidade multicultural e cosmopolita, principalmente a partir do início do século XX, São Paulo desenvolveu-se com a chegada de imigrantes de várias partes do mundo e migrantes de outras regiões do país. A mistura de raças, crenças e comportamentos gerou um humor distinto, no qual estão presentes o comportamento esquentado dos italianos, a teimosia dos espanhóis, a ironia judaica, a aspereza do concreto e uma mentalidade racional, fria e objetiva de uma urbe voltada para o trabalho. As tribos que cultivam determinados hábitos (roqueiros, hare krishnas, militantes políticos, playboys, etc.) cruzam-se em calçadas, bares e edifícios”. (Humor Paulistano, São Paulo: SESI, 2014, p. 413) 

Piratas do Tietê, criação de Laerte

São Paulo, juntamente com Rio de Janeiro,  é personagem problemática principal dos telejornais, novelas, romances, quadrinhos, filmes e teorias acadêmicas. Congestionamentos, assassinatos, sequestros, enchentes, luxo, cultura, artes e riqueza marcam o imaginário sobre a maior cidade da América do Sul. 

No Rio de Janeiro, as mônadas mutantes da irreverência no humor social, cultural e político, brotaram em1978, nos corredores e bares da Faculdade de Engenharia da UFRJ. Marcelo Madureira, Helio de La Peña, Roberto Adler, Claude Mañel e Bussunda fundam O Planeta Diário; em 1992, surgiu a revista Casseta & Planeta, de circulação nacional, que depois originou o programa de TV na rede Globo, a banda musical homônima e outras aventuras midiáticas como as Organizações Tabajara. A irreverência e as provocações atingiam toda a sociedade. Inexiste o politicamente correto. Os negros ainda são tratados de forma cafajeste pelos sinhozinhos "bacanas" e enturmados com as favelas; as mulheres são instrumentos de prazer e contemplação, escravas dos ditames da beleza oficial preconizada pelas redes de promotores, fotógrafos, criadores de modas e tendências artísticas e culturais. As que não se adequam ao estereótipo, ou não possuem proteção nas altas esferas do show lúdico-político, são simplesmente ignoradas ou servem de "escadas" para piadas machistas, sexistas, preconceituosas e vulgares. Mulheres muito gordas ou magérrimas, novinhas e tolas ou velhas e agressivas, vestidas como mendigas ou embrulhadas como peruas engalonadas, feministas exalando estrógenos ou sóbrias desfilando virilidade e atitude, todas eram um plantel de beleza, humor, crítica e acidez comportamental. Não é inocente a letra de Chico Buarque "Joga bosta na Geni, ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá para qualquer um ,maldita Geni." (1978). O humor iconoclasta atinge democraticamente os diversos segmentos sociais.

Enquanto isso, na dura realidade cotidiana parte da população urbana brasileira ainda reproduz as esferas do poder patriarcal, latifundiário, branco, cristão, detentor do poder econômico e político e forte influente do poder policial e militar. Os animais, os seres humanos e a natureza são propriedades dele, com a proteção do Estado e as bençãos de Deus, quase como no tempo de Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. Pensam que controlam tudo, então o real se esvai por entre os vãos das ruas, músicas e textos que abalam a ordem tão recente e dubiamente estabelecida.

De repente, entre a Copa do Mundo e as Olimpíadas, - e apesar dos avisos dos especialistas e acadêmicos -, surge crise hídrica para assombrar a orgulhosa urbe que, dias atrás, pensava a seca como praga endêmica do nordeste subdesenvolvido, carma ou castigo dos primos pobres e atrasados, motivos de piadas e olhares superiores, mera multidão ignóbil, ignara e ululante, geralmente petulante.


A seca faz parte de um ciclo meteorológico agravado por problemas ambientais que se acumularam por décadas graças ao descaso, à demagogia e à bonomia de gerações de políticos e eleitores alienados e deslumbrados com sua Nova Iorque semi-tropical. Brandão antecipa, em sua distopia, o descaso e a irresponsabilidade face à catástrofe denunciada: “Esta emergência é esperada há algum tempo. Algum? Eu nem tinha começado neste escritório e já lia sobre os constantes sinais vermelhos que a natureza vem emitindo. É o alerta, declaravam os cientistas. Os poucos cientistas que tinham sobrevivido  e tentavam criar defesas. Cientistas. Categoria mínima, marginalizada. Numa fase quase pré-histórica, o povo era alheio aos seus avisos.” (pág. 27). 

Rua Vergueiro, ao crepúsculo.

Assim como no romance, desde os primeiros anos do século XXI, sucessivos governos, instituições e a mídia, ignoraram ou subestimaram as sombrias previsões de geógrafos, ambientalistas, engenheiros e sociólogos. Esgotos continuaram a poluir os rios, mananciais foram invadidos e destruídos, a mata ciliar dos rios desapareceu, terrenos foram impermeabilizados por construções que violentaram todos os códigos de obras e edificações urbanos, submetidos aos interesses predatórios de empreiteiras, construtoras e à uma visão carente de planejamento urbano e qualidade de vida. O transporte público foi desprezado durante anos em favor da política insana de carros particulares. As ferrovias foram sucateadas e as linhas de metrô lentamente evoluem, em descompasso com outras cidades ao redor do planeta. O egoísmo, a ganância e a indiferença marcam a atitude média urbana  nacional. A falta de uma visão cidadã e de uma ética vivenciada por todos no cotidiano, provoca conflitos em seus condomínios, bairros e ruas. Poucas áreas de lazer são realmente públicas, poucas praças são acessíveis à toda a população e só recentemente os veículos coletivos, os ciclistas e pedestres recebem um pouco mais atenção do poder público. Uma imensa oferta de entretenimento, cultura, gastronomia e vida noturna fabulosa,  convive com os gargalos terríveis de uma infra-estrutura frágil e tímida, perante os desafios agudizados pela omissão ou pelo mal feito. 


 A distopia de Brandão termina de acordo com os mais tenebrosos pesadelos dos paulistanos no início de 2015: “Um ano sem gota de água e as represas de São Paulo esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as igrejas. Organizavam procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços artesianos começaram a ser abertos às pressas, às centenas. Por muito tempo, a secretaria de obras trabalhou em poços. Todas as verbas foram desviadas para os programas de água. Cada estado contou consigo, não havia possibilidade de ajudar o outro. O problema era igual para todos, estavam à beira da calamidade. Charlatões, fazedores de chuva, enriqueceram. As chuvas não vieram.”  (pág. 99-100).

Cantareira ressequida...

Provavelmente o final da história não será tão trágico e apocalíptico quanto o imaginado em Não verás país nenhum. Mas as consequências serão graves, os prejuízos imensos  os sofrimentos marcarão essa geração. Os mais ricos sairão nos piores dias do racionamento de água para suas casas secundárias ou fazendas; os mais pobres serão os primeiros naturalmente expulsos pela falta da mais vital substância do universo que é a água, subproduto do ar, da atmosfera que nos protege. Os tempos de energia e água a preços razoáveis acabaram. Por todo o país as tarifas aumentarão com base em argumentos inexoráveis como a “crise hídrica”, a necessidade de mais obras e manutenção, o aumento da população e outras razões que a tecnocracia descobrirá a cada desdobramento da crise. 

Tudo isso nos ensinará algo ou continuaremos a relevar fatos e dados, a postergar decisões impopulares e a exercer a demagogia e os discursos fáceis e agradáveis aos políticos oportunistas? A realidade brutal poderá servir para despertar a consciência individual em prol dos interesses coletivos e de uma ética que seja entendida e exercida de maneira natural por toda a sociedade. 
São Paulo, na terceira década do século XXI, será outra cidade. Espero que melhor e mais solidária, inteligente e articulada.


Textos consultados:

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

DAPIEVE, Arthur (Org.). Antologia Casseta Popular. Rio de Janeiro: Desiderata, 208.


Humor Paulistano - A experiência da Circo Editorial 1984-1995. São Paulo: SESI, 2014.




2 comentários:

Amilton disse...

Primo Luiz, nosso Brasil ainda não acordou. Continua dormindo em berço esplêndido. Você está certo. Um abraço.

Amilton disse...

Primo Luiz, nosso Brasil ainda não acordou. Continua dormindo em berço esplêndido. Você está certo. Um abraço.