sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo - Humor vital, humor mortal



 

No dia 7 de janeiro de 2015, houve mais um massacre, mais uma vez anunciado, contra seres humanos desarmados, porém muito perigosos por serem humoristas. Máfias, milícias, polícias, exércitos, guerrilheiros, bandidos, psicopatas, religiosos, profissionais da saúde, políticos e todo tipo de gente promovem matanças, individuais ou em grupo, todos os dias. Muitos holocaustos chegam aos meios de comunicação de massa e nas redes sociais, entram para a história ou são romanceados pela literatura, pelas histórias em quadrinhos ou pelo cinema. Outras chacinas ficam incógnitas, perdidas em recantos geográficos insignificantes ou inacessíveis,  esquecidas nos desvãos das notícias e dos relatos, mas nem por isso os que sofreram a violência sentiram menos a humilhação, as dores e a perda de tudo o que possuíam em suas vidas, inclusive a própria. 

Todas essas perdas são sofríveis. A violência é estúpida, brutal, geralmente irracional, mesmo quando planejada por engenheiros e técnicos em destruição em massa e preconizadas por dirigentes altamente intelectualizados, sejam os políticos, militares, acadêmicos, religiosos ou simplesmente marginais em busca de algo que – imaginam - dará sentido às suas miseráveis existências. Toda violência é também absurda, portanto risível. 

Por isso os seres humanos na redação da Charlie Hebdo, em Paris, no dia 7 de janeiro eram desarmados e perigosos. Usavam o riso, o humor para atacar as bases dos fundamentalismos e certezas que alicerçam os muros da repressão, do poder, ou seja, da violência. Eu posso matar, torturar, condenar, reprimir, mas você não pode rir de mim. Seu riso é uma arma tão ou mais mortal que minha espada, meu fuzil, minha granada, meus instrumentos precisos e engendrados para produzir submissão e dor. Por isso, se você rir ou, pior, provocar o riso, você merece morrer. 



A questão subjacente ao massacre do periódico Charlie é o humor. Os totalitários, os boçais, os fundamentalistas, os que possuem certezas pétreas não riem. Não admitem o riso. Não suportam o sorriso, a ironia, a gargalhada, a derrisão. Por que?

Há uma vasta bibliografia sobre o riso, o humor, o cômico. Usarei principalmente a História do riso e do escárnio, de George Minois (São Paulo: UNESP, 2003) para embasar minhas risíveis ideias sobre a ferocidade humana contra seu próprio senso de humor. 

No ocidente o riso é dionisíaco, vem das sombras dos tempos mitológicos gregos, das festas rurais de dezembro promovidas pelos camponeses da Ática. Eles saiam em procissões cantando refrões obscenos, plenos de zombaria, carregando enormes phallos (pênis) que são os símbolos da fecundidade da Mãe Terra (Gaia ou Gea). A festa terminava com um kômos, uma correria de bandos embriagados que cantam, riem e interpelam as outras pessoas. É dessa komôdia que surge a comédia. O riso, nas brumas do tempo, é associado à agressão verbal, com as forças obscuras da vida, do caos, da subversão. É o carnaval, a ruptura cerimonial e ao mesmo tempo caótica com o tempo comum. Mircea Eliade, Jean-Pierre Vernant, James G. Frazer, Pierre Dumézil e outros estudiosos da mitologia pesquisaram esses tempos primordiais. Aristóteles entendia que a comédia se originou nos cantos fálicos dessas farras campestres dionisíacas. Umberto Eco, em O nome da Rosa, mostra de modo romanceado como teria desaparecido a Comédia de Aristóteles, que seria a segunda parte da Poética, que trata tragédia. A comédia já era ferozmente condenada nos tempos do cristianismo medieval. Porém, o mundo clássico expressa que “o riso, como irrupção de forças vitais irracionais, está no centro da tragédia humana. Essa ideia seduziu a época contemporânea, tão marcada pelo ambíguo.” (Minois, 2003, p. 37). 

Minois divide a sua história do riso em três períodos: 1) o riso divino dos antigos gregos; 2) o riso diabólico, satanizado pelo cristianismo medieval movido pela afirmação dúbia e não fundamentada de que “Cristo nunca riu”. Enquanto o riso grego sacralizava o mundo, o riso diabólico o dessacralizava, sendo portanto condenado pelas igrejas cristãs; e 3) o riso humano, oriundo das crises de consciência da mentalidade europeia, origem do pensamento moderno. 

Na antiguidade (século IV a.C.), é Demócrito quem radicaliza o riso, fazendo dele uma crítica do conhecimento  e a expressão de um ceticismo absoluto. Para ele “a derrisão é a constatação da incapacidade radical do homem de se conhecer e conhecer o mundo. Nada merece ser levado a sério, já que tudo é ilusão, aparência, vaidade – tanto os deuses como os homens.” (Minois, 2003, p. 62). Há ainda o riso da critica social que os cínicos, como Diógenes, expressam para abalar as hipocrisias e certezas de suas sociedades. 



Se quisermos uma definição de humor, a de Pìerre Daninos é eloquente e ampla: “É antes de tudo, na minha opinião, uma disposição de espírito que nos permite rir de tudo sob a máscara do sério. Tratar jocosamente coisas graves e gravemente coisas engraçadas, sem jamais s elevar a sério, sempre foi próprio do humorista. Graças a isso, ele pode, com frequência, dizer tudo, sem parecer tocá-lo.” (Minois, 2003, p. 78, 79).  Para Minois, “o humor surge quando o ser humano se dá conta de que é estranho perante si mesmo. O humor nasceu com o primeiro ser humano, o primeiro animal que se destacou da animalidade, que tomou distância em relação à si próprio e achou quer era derrisório e incompreensível.” E isso é intolerável para os fundamentalismos. 

O cristianismo, no período medieval, era a religião dominante que prevaleceu sobre o judaísmo, apossou-se do pensamento grego e dominou as estruturas administrativas e jurídicas do decadente império Romano. Como religião homogênea de um período marcado pela fragmentação geopolítica e pelos perigos de uma longa decadência imperial, tornou-se apologético, dominador e cioso de seus direitos conquistados. Não admitia gracejos, dúvidas ou liberdades individuais. Um dos mais severos adversários do riso na cristandade nascente foi São João Crisóstomo (334-407). Para ele o riso era satânico, infernal e pecaminoso. Apesar do cômico e do grotesco se mesclarem de maneira paradoxal e complementar no mundo medieval, era forte a tentativa de repressão contra o riso, seja entre os católicos, seja entre as nascentes igrejas protestantes, especialmente João Calvino com suas ideias de predestinação, que dificultavam arroubos humorísticos por parte dos inexoravelmente condenados.  

 O periódico francês ironizava tudo e todos. Essa charge foi quando o Papa Bento XVI renunciou e faz referência aos vários escândalos preconizados pela Guarda Suiça do Vaticano. Os cardeais católicos não mandaram fuzilar os cartunistas.  

Mas o Iluminismo e os avanços sociais, científicos, políticos e culturais abrandaram a antiga religião dominadora, que atingiu o apogeu de seu poderio tirânico na época das Inquisições. Foi preciso um longo caminho até que protestantes, ortodoxos e católicos entendessem que não eram extensão da verdade absoluta e da vontade de punição de seus Deus sobre a Terra. Os fundamentalistas cristãos atuais ainda promovem atos de violência indireta como a demonização da homossexualidade, a exclusão dos que não são “crentes” e a repressão contra religiões consideradas expressão do mal, como o candomblé e isso é condenável. Mas a repressão física e as torturas oficiais foram eliminadas das práticas cristãs, desde o final da Idade Média, ficando restritas a alguns mosteiros e conventos até a época do Concílio Vaticano II (1962-1965), quando a Igreja Católica ficou mais aberta ao mundo e à modernidade. 

Porém o Islamismo não passou por um período de renovação cultural em todos seus segmentos, portanto o fundamentalismo islâmico atual é uma das ameaças à paz mundial, às democracias e às liberdades individuais. Sua intolerância e obscurantismo teológico levam à repressão de seus próprios fiéis que são de outra vertente islâmica, às repressões contra as mulheres  e ao ódio contra as diferenças culturais, especialmente a liberdade e a pluralidade ocidentais. Nessa atmosfera malsã, não há espaço para o humor. 

Os judeus desenvolveram um humor cortante, livre, ácido, inclusive voltado para seus hábitos culturais. Os cristãos aprenderam a alegria de viver, a se expressar nos cantos e danças alegres de missas e cultos, a celebrar a vida em sua plenitude. Os “tempos modernos” fizeram bem para essas duas primeiras religiões monoteístas, mas envenenaram uma pequena parte do islamismo. Essa tragédia é uma perda histórica significativa. Na época medieval, durante o domínio islâmico na Península Ibérica, os califados (governos islâmicos) eram exemplos de tolerância religiosa (judeus, cristãos e muçulmanos viviam juntos), do  desenvolvimento urbanístico, da ascensão das ciências humanas, biológicas e exatas, de formações sociais complexas e sofisticadas. Constantinopla, Damasco, Córdoba, Sevilha, Granada, Alexandria, eram polos civilizatórios reconhecidos e admirados. Por várias razões históricas, uma pequena parcela do islamismo chegou ao século XXI turvado pelos melanomas pseudo-teológicos que moldam um fundamentalismo arcaico, fora dos tempos e dos fluxos civilizatórios contemporâneos. Essas minorias fundamentalistas que se utilizam de atentados terroristas e estados teocráticos repressores para impor seus princípios, comprometem a riqueza vivencial que o islamismo levou para várias culturas e civilizações.  O teólogo Hans Kung faz uma análise erudita e ecumênica sobre as religiões monoteístas em sua trilogia O Judaísmo, O Cristianismo e O Islamismo. Essas três religiões estão mais entrelaçadas histórica, cultural e teologicamente que o senso comum imagina.       
       

Uma questão complexa e oportuna: criticar o islamismo é crime de ódio e criticar o judaísmo e o cristianismo são expressões artísticas?  Quem são os intolerantes nessas histórias?

O problema fulcral dessas minorias islâmicas é a inexistência de auto-crítica, o amálgama entre religião e estado,  negação em se abrir ao mundo e às suas diferenças e riquezas culturais e a incapacidade de rir de si mesmos. 



Jonathan Swift, com sua humor ácido britânico, lembra que os “homens nunca são tão sérios, pensativos e concentrados quanto quando estão sentados no penico.” (Minois, 2003, p. 425).  Essa é a essência escatológica da crítica representada pelos caganers, da Catalunha, onde os grandes líderes políticos, celebridades do esporte e das artes, religiosos e todo tipo de gente são representados por bonequinhos, defecando tranquilamente com uma expressão facial serena e ao mesmo tempo contemplativa. O humor negro é uma declaração intelectual de amor à humanidade. 

O humor é fundamental, mas séculos de zombarias e gargalhadas não eliminaram a astrologia, as crenças supersticiosas ou os fundamentalismos religiosos. “É porque é preciso um mínimo de espírito para apreciar o espírito, e aqueles que o têm já são convertidos; para os outros, o muro da estupidez constitui uma blindagem impermeável à ironia. Portanto a ironia é para uso interno; ela mantém o bom humor, permite suportar a estupidez e absorver os golpes baixos da existência.” (Minois, p. 435).  


A lista dos problemas causados pelo fundamentalismo islâmico: terrorismo, tirania teocrática, submissão das mulheres,  intolerância e perseguição dos muçulmanos moderados, medo da cultura ocidental.

Enfim, o riso é um remédio potente contra a angústia através da qual rumamos paulatinamente para a morte, a explosão de uma risada seria a explosão vital e não fatal ou condenável. O riso pode aumentar as rachaduras da razão pretensamente absoluta e exclusivamente verdadeira. É isso que os fundamentalistas não o suportam, pois a acidez do riso corrói as estruturas que sustentam os mitos das certezas eternas.  

Nem sempre o humor é gratuito, saudável ou favorece as boas relações humanas. O humor também pode exacerbar preconceitos, dogmas, ódios ou racismos. O sarcasmo não é a mesma coisa que a derrisão. Rir de quem não pode se defender ou das vítimas de injustiças ou desgraças é uma covardia. 
Lembro uma entrevista do saudoso Bussunda, humorista do grupo Casseta e Planeta, onde ele afirmou que tudo tem limites, até o humor. Mas esses limites não podem ser delimitados com a violência discricionária e autoritária dos que pensam que são donos da verdade. Ou, pior, dos que estão convencidos de que uma divindade lhes contou a única e exclusiva verdade sobre a Terra.



 OBS.: Deixo claro que faço uma distinção profunda entre o islamismo (uma religião respeitável enriquecedora, como todas as outras religiões que pregam a paz e a tolerância) e o fundamentalismo islâmico, uma perversão tão nefasta quanto aos outros fundamentalismos religiosos ou políticos. 

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