O insólito às vezes se
instala em nossas cômodas vidas, até tediosas, inesperadamente e, em geral, de
forma absurda e provocante. Sem avisos ou presságios funestos, a teia da
normalidade cotidiana se esgarça e a fatalidade se instala em nossas telas e
mentes. A dúvida instigante se apodera de nossos gadgets e fígados, já entupidos de bits mal produzidos e de excessivos nutrientes informacionais,
inclusive a falta ou a falsidade das notícias sobre o que não sabemos ou não
podemos comprovar.
Como é possível um jato
de 250 toneladas, com 239 passageiros, simplesmente desaparecer em uma
madrugada qualquer, com bom tempo e em rota conhecida e mapeada? O que houve
com o Boeing 777-200, voo MH370 da Malysia Airlines, que ia de Kuala Lumpur
para Beijing e nunca chegou? O que incomoda, neste caso específico, não é uma
queda ou explosão acidental, um atentado, um sequestro ou um ato de loucura dos
pilotos ou de algum tarado que invadiu a cabine de comando. O desassossego se
instala pela lacuna, pela ausência de informações sobre o que houve com o jato:
onde ele está? Por que diabos a parafernália embarcada (GPS, TCAS, caixa preta, ACARS, radares, ELT...)
não enviou nenhum sinal eletrônico e se mantém em silêncio apesar das buscas?
Teria o avião caído – ou explodido – tão longe de sua rota, tão repentinamente,
que apenas restou o vazio nas telas perante tão insólita tragédia que nos
mantém em suspense há mais de 150 horas, em plena era de vigilância eletrônica
nos ares, mares, terras e espaços virtuais?
Isso não parece algo
natural, muito menos sobrenatural. Isso tudo tem jeito e cheiro de histórias
mal contadas por conta de interesses geopolíticos estratégicos que tentam
acobertar o mal feito ou o engano, talvez o engodo, por trás de tantos atos e
omissões mal explicadas. Os erros crassos ou abusivos precisam ser dissimulados
ou distorcidos ante a aldeia global estarrecida pelas mentiras das fontes e
fatos do universo midiático e político.
Resta-nos a (in)
certeza de estarmos frente a um evento raro e nefasto, uma tragédia inédita e
ninguém – ou pouquíssimos – vislumbram suas causas e consequências. Talvez tenha
sido mesmo uma falha catastrófica e acidental, um mero azar ou, quem sabe, um erro imenso que governos autoritários
(Malásia, Vietnã, China...) tentam escamotear e ganhar tempo para que a opinião
pública mundial possa digerir ou, aos poucos, esquecer.
Mas como se sentem os
parentes, amigos e conhecidos das 239 histórias pessoais que se desvaneceram a
bordo de uma das maravilhas tecnológicas contemporâneas?
Como explicar aos
milhões de passageiros da imensa malha aérea internacional, que o improvável, o
incógnito, o misterioso se enrosca nas teias aéreas e desafiam lógicas, bons
sensos e sensores? Terá sido uma dessas fatalidades que o randômico universo
ocasionalmente nos reserva para lembrar que somos partículas em uma galáxia
desconhecida e perigosa? Ou será uma dessas artimanhas humanas que mesclam
terror, espionagem ou puramente loucura? De qualquer modo, a segunda hipótese
apenas complementa a primeira.
Ás vezes, em um voo
noturno, ligeiramente entorpecido pelo vinho e pelo stilnox, colo o nariz no plexiglas da aeronave, sobre algum oceano,
a onze mil metros de altitude e deixo o olhar vagar perdido pelos abismos
celestes e da minha imaginação. No tubo de alumínio pressurizado, climatizado,
cercado de combustível líquido e turbinas incandescentes, penso em minha
fagulha existencial suspensa entre as trevas primordiais e as luzes
tecnológicas hodiernas. A imensa maioria dos voos, navios, trens, ônibus
carros, chega aos seus destinos, mas a ausência anômala de algo nos recorda nossa
efemeridade e fragilidade, perante a natureza ou a outros humanos. Culturas e
técnicas, projetos e devaneios flutuam velozmente pela atmosfera rumo a um
destino imaginado. Depois deslizo a cortina plástica e durmo enlevado pelo
zumbido reconfortante das turbinas e dos sistemas de preservação de vida da
aeronave. Acordo com as luzes anunciando a proximidade do destino e o cheiro de
café fresco. Após o pouso esqueço isso tudo e saio do tubo para novos mundos e
expectativas.
Não tenho medo de voar,
até adoro, apesar de alguns desconfortos logísticos aeroportuários. Porém, a cada
noite passada a bordo, meus temores ancestrais se mesclam aos atuais enquanto
perfuro a noite num míssil tripulado e habitado. As trevas são suportáveis
graças ao tesão da viagem, da descoberta, da aventura e do prazer em ver ou
rever o mundo e curtir os tempos que me foram dados.
O próximo gole de vinho
será em memória dos desaparecidos há quase uma semana. Hoje posso apenas
expressar a solidariedade e orações aos que esperam notícias de suas pessoas
queridas e deixadas, por um longo tempo, no incognoscível das coisas do século...
Luiz Gonzaga Godoi
Trigo, 2014
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