São Paulo teve a nona edição da Virada Cultural, uma maratona que reúne dança, música, teatro, artes plásticas, performances, cinema, gastronomia, bebedeira, pegação, drogas leves e pesadas, arrastões e eventualmente uma violência mais hard, como assassinatos (foram dois, este ano) e algumas facadas. Em suma, uma típica festa metropolitana, hiper-moderna e latino-americana, com laivos inconfundíveis de fogosa brasilidade. Mais de 900 eventos dividiram espaços e tempos com tribos, classes e nichos da maior cidade do país. A famigerada classe média local vê a festa com desconfiança e participa com cuidado. Os emergentes, naufragados e submersos se jogam de diversas formas e estilos. As elites ignoram solenemente a plebe - rude, ignóbil e ignara - que pulula pelas ruas, como nos piores pesadelos de Lovecraft.
Os mais cautelosos (como eu) perambularam pela farra apenas durante o dia. Adoro ver a cidade dos negócios intensivos virar uma teia de ócios, prazeres, entretenimento, artes e sacanagens. Às noites, todos os gatos e outros bichos são pardos e indefinidos, portanto há que se deslizar pelas ruas com a ardilosidade das serpentes e com a astúcia das raposas. Preferi passar a noite entre meu sofá e a cama.
Mas durante o dia saí da toca para ver o povo curtir a festa no pedaço mais descolado da América do Sul. É só ver a curtição, com muito relaxo, que ela toma conta de nossas mentes e almas. O espetáculo acontece nos palcos e nas ruas, sucede com a gente mesmo.
Policiais a cavalo me lembram a ditadura, os anos de chumbo, porém nos dá uma sensação de segurança que remete às cidades desenhadas por Moebius ou Bilal, com roteiros de Jodorowsky. Essa foto foi ao lado do antigo São Paulo Hilton, cuja rua se destaca, há décadas, por uma decadência descarada.
Nossa sociedade machista latina é tão evidente que o Banco Mundial fez uma campanha publicitária no metrô contra a violência às mulheres. O lutador Anderson Silva (que abriu mão do cachê) mostra que macho que é macho respeita as mulheres. E se faz respeitar, pois caráter e carinho são boas bases de relações.
Vários bares viraram camarotes para abrigar voyeurs, preguiçosos e adoradores dos efeitos etílicos.
A estrutura do viaduto do Anhagabaú serviu de apoio para vários balanços que planavam sobre as pedras das calçadas.
Ao lado, uma aranha feita de madeiras articuladas era parte de muitas instalações artísticas espalhadas pela cidade.
Ficou claro que Dance pole ( ou pole dance...) não é apenas para mulheres. Esse aí refestelou-se em um dos palcos das ruas.
O velho coreto repaginado do início da Av. São João é um point entre engraxates de luxo, bares mais caros (e nem tão bons assim) e o mundo das finanças do centro velho, onde (nos dias de semana) executivos e executados se espremem pelas ruas estreitas imaginando que são astros ou figurantes de Wall Street.
Mas no domingo os olhares se voltaram para as artes e performances que tomaram as praças e avenidas.
Há uma série de instalações do artista Eduardo Srur, intitulada Sonhos e Pesadelos. Uma das instalações é esse farol náutico com oito metros de altura, no vale do Anhagabáu. Vê sua base? Olhe mais de perto...
Identificou?
Ela está coberta por milhares de ratos de borracha e exerce um fascínio táctil, unido à repugnância espontânea ao insólito que negamos por respeito à nossa saúde mental. Para saber mais sobre esse artista que já fez muitas intervenções na cidade acesse: http://artenalinha.wordpress.com/2013/04/09/sonhos-e-pesadelo-de-eduardo-srur-no-centro-da-cidade/
As linhas arquitetônicas são clássicas. Após décadas fazendo parte do cenário urbano, como um imenso muro torto, o edifício Copan ainda atrai nossos olhares por sua ousadia e volume. No início da década de 1980, quando era estudante da ECA, morei no 30º andar da torre. Veio daí minha paixão pelas alturas das cidades imensas, coalhadas de prédios e histórias.
Quem se dispôs a enfrentar as ruas ficou gratificado. Todo mundo se aboletou como podia para ver, curtir e interagir com a cidade e suas obras culturais.
Há um sentido de pertencimento em sentar nas calçadas para ver alguma coisa acontecer, passar, viver, rolar... Como nas pequenas cidades do interior ou ao lado dos boulevares litorâneos, as pedras do chão podem servir de arquibancadas para ver um outro mundo, com outros olhos, de outros modos.
Ver, ser visto, possibilitar que outros vejam, reproduzir e compartilhar as imagens e sensações. Experimentar as ruas. Teve festa, violência, alegria, porrada, curtição, bebedeira, amores, discussões, experiências de vida. O Eduardo Suplicy teve a carteira roubada enquanto assistia um show e subiu ao palco para pedir a devolução. Diz a lenda que devolveram só para ele parar de falar, ou para evitar que cantasse, coisa que adora fazer e ali seria difícil de segurar. O jornalista Gilberto Dimenstein teve seu celular roubado num arrastão, mas não se juntou ao coro dos que criticaram e execraram a Virada Cultural. Ele disse que o fato de ter artes, cultura e atividades de prazer organizadas é muito bom para a cidade e ajuda a diminuir a violência. A molecada e as pessoas enquanto curtem não fazem asneiras, em geral. Concordo com ele. Desde Roma, pão e circo fazem parte de políticas públicas. Claro que os eventos podem ser aprimorados e anualmente os erros são sanados. A violência é parte da cidade e se expressa igualmente em festas, paradas, jogos, carnaval, locais públicos e privados de diversão. Ela não é intensificada por essas festas, mas é resultado de condições sociais existentes. Enfim, a festa é fundamental.
Quem quiser ver a entrevista do Dimenstein acesse: http://cbn.globoradio.globo.com/cbn-sp/2013/05/20/VIRADA-CULTURAL-DIMINUIU-A-VIOLENCIA-EM-SP.htm
Assim passei o domingo, com todas as ambiguidades, incoerências e paradoxos urbanos na grande festa popular que tomou a urbe pelo imaginário, pelo prazer e pelo tesão existencial. Com muita estética e sensações, num típico jardim paulistano.
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