Fotos e texto: Luiz G.G. Trigo
O que se passa na mente de um homem, lúcido e bem disposto, com 97 anos de idade? Meu tio (irmão mais velho da minha mãe) completa essa idade hoje, 7 de setembro, e fui perguntar a ele coisas que gostaria de saber e a conversa foi muito à vontade e edificante. Fiquei sabendo fatos que ele nunca tinha nos falado, mas também eu nunca tinha perguntado.
José Américo de Godoy Netto nasceu em 7 de setembro de 1913, em Campinas (SP). Nasceu em casa, como era comum na época e, segundo sua mãe, evidentemente já falecida, o parto foi ao som de uma banda que inaugurava o jardim Carlos Gomes. Ele casou-se três vezes (enviuvou duas), teve duas filhas (Iara e Mara, ambas do primeiro casamento), seis netos, quatro sobrinhos e três bisnetos (duas meninas e um menino). Hoje é nosso parente mais idoso, o patriarca de uma família não muito grande, mas orgulhosa de seus veneráveis. Claro que eles está aposentado, mas é o síndico de seu condomínio e o administra promovendo várias reformas importantes, mas sem aumentar o valor da taxa condominial.
A entrevista foi ao estilo bate-bola. Se quiser saber o que é ter a experiência de quase um século de existência é só ler:
Blog: Como o senhor se sente aos 97 anos?
Godoy: Me sinto como um jovem de 40 anos, disposto, com vontade de viver mais um pouco. Estou lúcido, sei perceber perfeitamente as mudanças que operam no mundo e procuro acompanhar as evoluções que se sucedem.
Blog: Como é ter quase um século na memória?
Godoy: Eu recordo com muita nitidez desde a infância, a partir dos oito anos de idade, recordo a minha adolescência e a mocidade e a passagem para a vida adulta.
Blog: Uma saudade.
Godoy: Minha infância, alegre, saudável, muito querida, tenho saudades dos meus pais e com especialidade do meu avô Thomas. Ele era um “jovem” de 84 anos, português, alegre, muito disposto a sair e a levar o neto para passear.
Blog: Uma curtição de sua época
Godoy: Na minha mocidade a curtição, para mim e meus amigos da mesma idade, era jogar futebol com bola de meia que as mães faziam, eram meias velhas recheadas de capim e papel, pois apesar de sermos de classe média, não havia dinheiro para comprar bolas de borracha. Outra curtição era a bicicleta que um vizinho, de família mais abastada, às vezes nos emprestava para andar e era um acontecimento fora do comum A gente tinha só velocípede e nada mais..
Blog: E a curtição na mocidade?
Godoy: Aí já via a vida de um modo diferente, começava a apreciar as meninas, ir ao cinema, os espetáculos de circo que a gente aguardava com ansiedade chegar à cidade, com seus palhaços e os animais...
Godoy e sua esposa, Leo.
Blog: O primeiro namoro.
Godoy (dando uma risada satisfeita): Ah, eu não me lembro muito bem, mas eu devia ter mais ou menos uns 17 ou 18 anos, ela se chamava Nair, era uma vizinha de Campinas, bonita e simpática, uma beleza.
Blog: a vida profissional.
Godoy: Cursei por quatro anos a Academia de Comércio São Luís, do professor Alberto Martins, em Campinas. Diplomei-me como contador e fui evoluindo, trabalhando em escritórios de contabilidade e outros empregos até prestar concurso na Companhia Campineira de Tração, Luz e Força, onde fiquei por dez anos (1920-1931). Nesse período estourou a Revolução Constitucionalista de 1932, eu era do Tiro de Guerra e fomos incorporados ao 3º Batalhão do 5º Regimento de Infantaria e destacado para uma das frentes de combate, mas não cheguei a lutar. Foi em Cunha (Vale do Paraíba) e alguns dos meus colegas e vizinhos que entraram em combate perderam a vida naquela luta entre irmãos, pois foi entre brasileiros.
Blog: E o Banco do Brasil, quando o senhor foi para lá?
Godoy: Até 1940 tive vários empregos, em bancos, vendas, escritório de advocacia, até em uma metalúrgica. Em 1941, prestei concurso para escriturário no Banco do Brasil, em São Paulo, tendo sido aprovado e designado para servir em Jaú, onde tomei posse em 1942 e lá fiquei até 1946, quando permutei a vaga com um funcionário para a cidade de Campinas. Trabalhei em Campinas até 1952, sendo transferido para São Paulo, na agência Ipiranga. Em 1965, fui designado como instalador da nova agência no CEASA, onde permaneci até 1969. Depois fui transferido para a agência Lapa, onde me aposentei em 1973, no cargo de Sub-Chefe de Seção. Após a aposentadoria fui convidado pelo Banco Central para ser representante do interventor no Banco Independência e na firma Coroa, empresas em regime de liquidação. Ali fiquei por dez anos, quando me aposentei definitivamente, em 1984.
Uma foto de quando ele era jovem, em destaque na sua sala de estar.
Blog: Uma grande amizade
Godoy: Ah, isso é meio difícil de lembrar... Grandes amizades de da infância e da juventude ... José Pupo, o Amaury, Bendito Bicudo, Carchedi e o Trento Colussini. Falei quantos, cinco? Chega, os outros eu não lembro mais.
Blog: Uma grande viagem
Godoy: Fiz uma viagem mais longa por volta de 1958/1959, com minha mulher, Madalena, a Cândida, a irmã dela, seu Pérez, o pai e minhas filhas. Fomos e voltamos de navio até Buenos Aires, na época era uma longa viagem e o navio era britânico, da Mala Real Inglesa. A partir de 1975, comecei a viajar mais, já com minha segunda mulher, e conheci a maior parte dos países da América do Sul, Estados Unidos, México, Canadá e vários países da Europa.
Blog: Uma cidade brasileira que o marcou
Godoy: Fortaleza, tem praias maravilhosas, subimos num morro onde a gente avistava os arredores...
Blog: O que mais gostou no exterior?
Godoy: Paris, em primeiro lugar; depois Madrid e a Holanda.
Blog: Um grande momento da vida, uma emoção inesquecível.
Godoy: Quando casei pela primeira vez, com a Madalena (1941), em Campinas. Fomos de trem passar a lua-de-mel no Rio de Janeiro.
Blog: Como a conheceu?
Godoy: Ah, foi interessante ... Foi num baile de carnaval da sociedade Espanhola, perto de casa (Campinas), acho que em 1938. Entrei e vi algumas moças sentadas. Então sismei com a Cândida, era bonitona e a convidei para dançar. Sua irmã, a Madalena, me disse que dançaria comigo porque ela estava se recuperando de uma pequena cirurgia. A partir daí nos víamos de vez em quando até que começamos a namorar. Em dois anos casamos.
A entrevista foi ao entardecer, na calma de seu apartamento na Vila Mariana (SP)
Blog: Praticava esportes?
Godoy (com outra risada): Ah, adorava futebol, jogar com os amigos.
Blog: Times
Godoy: Guarani, em Campinas, e São Paulo Futebol Clube.
Blog: Freqüentava clubes na juventude?
Godoy: Muitos. O Concórdia, o Fascio, que era italiano, o clube Português, Tênis Clube, o Cultura Artística. Nessa época eu era dançarino, então tinha entrada franca, assim como meus amigos que também dançavam. Modéstia a parte, dançava muito bem e éramos muito bem acolhidos. A partir de 1930, passei a frequentar o Clube Campineiro de Regatas e Natação, como sócio, mas aí para nadar, remar, jogar basquete e futebol.
Blog: Então eras um pé-de-valsa... Aprendeu a dançar sozinho?
Godoy: Não, fiz aulas de dança no clube Luzitano, onde os rapazes que não sabiam dançar tinham aulas às quartas-feiras e a gente aprendia dançando homem com homem. Daí, aos domingos, havia as soirées, onde iam as moças com suas famílias. Eram bailes respeitáveis, solenes e começavam às seis da tarde para terminar às dez da noite, em ponto.
Blog: Por que o senhor curte São Paulo para morar?
Godoy: Porque tem uma vida agitada, com mais possibilidades para a vida, tem coisas que não se encontram em outros lugares e até a facilidade para viajar é maior. Hoje as cidades do interior têm muitos recursos, mas antigamente não, era São Paulo.
Na mesinha da sala, as fotos com as filhas, genros, netos e netas
Blog: Uma esperança.
Godoy: Que a Leo (sua esposa) melhore da perna e fique boa o quanto antes.
Blog: Como foi a sua vida?
Godoy: Uma vida trabalhosa, de sacrifícios rapaz, mas que valeu a pena. Pode por aí, durante toda minha vida nunca fumei, bebia socialmente e nunca tive moléstia grave, só doenças de criança como sarampo, e agora a diabetes. Hoje não bebo mais por causa dos remédios, mas gostava de um chopp ou uma cerveja.
Blog: Quais os seus valores?
Godoy: (pensou) Um valor no meu ponto de vista: ser correto, honesto e não ter inveja dos outros.
Blog: O mundo. Fale sobre o mundo.
Godoy: O mundo é uma bola .. (risos)...O que você quer que eu diga do mundo? Vivemos um período de mudanças, com crises, e as pessoas têm dificuldade para saber o que acontecerá no dia de amanhã. Analise bem, aqui no nosso país, as queimadas, as mudanças de clima no mundo...
Blog: O mundo melhorou?
Godoy: A minha vida melhorou, desde a infância, mas a custa de esforço próprio. Estudando, trabalhando, economizando, investindo a gente evolui. Quanto ao mundo, alguns acham que piorou, outros que melhorou. Eu penso que ficou no meio a meio, é algo bastante subjetivo.
Blog: O que o senhor deixa para as pessoas que vão ler essa entrevista? Qual a sua mensagem?
Godoy: Para os principiantes, sejam honestos, estudem, pratiquem o bem que isso só vai beneficiá-los no futuro. É o meu ponto de vista, são poucas palavras, mas acho o suficiente. Para todos eu digo, sempre tive bom humor. Sejam otimistas, não vejam maldade nas coisas. Nunca fui pessimista, sempre encarei as coisas de melhor maneira possível, mesmo as dificuldades.
Blog: Um plano para o futuro.
Godoy: (pensou) Vai ser difícil. Um plano para o futuro ...Se possível conhecer Cancun (México) ainda e mais alguns lugares do nosso país, Brasil, que ainda não conheço e são lugares maravilhosos. Nada mais.
Ele foi meu tutor de 1975 até 1980. Quando minha mãe morreu (1975), meu pai estava no Rio de Janeiro e então o tio mais velho ficou responsável por mim. Eu morava com outro tio, o Juvenal, em Campinas, assim acabei tendo três pais. Enfim, além do carinho e amor ele ensinou-me a economizar e a investir, a estruturar a vida, sempre através de exemplos e palavras. Hoje, em seu aniversário, testemunho o reconhecimento de sua correção e firmeza. O Patriarca está quase a um século na família.
2 comentários:
Luizinho, amei a entrevista com o vovo! Nossa, como eu gostaria de estar ai para comemorar junto seus 97 anos! Ele sempre sera um exemplo pra mim!
Que linda entrevista Luiz! Emocionante! Parabéns! Bj
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