Gosto dos navios. Curto
dormir embalado pelas ondas, ler relaxadamente por puro prazer, degustar vinhos
com comidas saudáveis, conversar com algumas
pessoas, dançar em algumas noites mais inspiradas e olhar demoradamente as
paisagens que vão se apresentando ao nosso redor. Não sigo a intensa
programação de bordo, forço amizades ou me insiro em bandos organizados. Tampouco
jogo no cassino, assisto os shows estereotipados ou me empanturro com gorduras,
açúcares e calorias anódinas.
Nesta temporada de
viagens tive uma reunião na Universidade de Girona (19 de dezembro), onde fui
com o professor Antonio Sarti. Depois fiquei em Barcelona onde passei o Natal
sozinho, no hotel. Foi a segunda vez que passei Natal só (a primeira foi em
1986, em Orlando, Flórida, quando era guia internacional da Abreu). É uma
experiência exigente, pois nossa cultura exige um Natal familiar e gregário,
mas era o que eu tinha de possibilidades, pois o navio zarpou de Barcelona só
no dia 26, regressando em 5 de janeiro. Iria
na missa do Galo que, na Espanha, é realizada à meia-noite. Mas senti, à tarde,
o início de um leve resfriado que me acompanhou nos próximos dias, então fui dormir.
Dia 25, fui à missa na Catedral, celebrada pelo Cardeal de Barcelona. Depois
almocei no 111, restaurante do hotel Meridién, localizado na Rambla, que serviu
um menu de Natal com muitos vinhos da
casa Marquês de Riscal e uma boa cava.
No dia 26 (dezembro de 2014) embarquei no Norwegian Spirit, um navio com 75.904 toneladas,
lançado ao mar em 1998 (renovado em 2011), capacidade de 2 mil passageiros, com
um sistema auto-denominado free style,
sem horários fixos para alimentação e com boas opções de entretenimento e
alimentação. Além do bufê 24 horas, há dois restaurantes com cardápios
generosos e incluídos no pacote, além
de seis restaurantes (dois japoneses, asiático, italiano, francês, carnes), pagos
e com exigência de reserva antecipada (custam de 15 a 30 dólares, por pessoa,
sendo que pratos como lagosta tem um acréscimo de mais 10 dólares).
O Norwegian Spirit atracado em Funchal, ilha da Madeira.
Viajando só, reservei
uma cabine externa sem varanda e me esparramei na cama de casal. Levei um dos
volumes de Fundação, do Isaac Asimov
para ler, mas deixei para comprar minha literatura de bordo em Girona (onde
Sarti me levou numa ótima livraria) e em Barcelona, cidade com opções
escandalosas em todas as áreas da vida. Escolhi algumas obras de Joseph Conrad,
dois romances de Carlos Sanrune (um espanhol pouco conhecido no Brasil), três
obras místicas cristãs (Anthony de Mello, Tomás de Kempis e Raimon Panikkar) e um
livro de Amand Puig sobre a simbologia teológica da Sagrada Família, fabulosa
Basílica idealizada por Gaudí. A ideia não era ler tudo, mas ter opções de
acordo com os humores dos dias e lugares, mas li o bastante.
Camarote 4566, deque 4, externa.
O embarque foi
tranquilo e rápido. Cheguei no Terminal Marítimo às 12h45. Despachei a mala,
passei pela segurança (raio X), fiz o check
in (já preenchera tudo pelo site da Norwegian
Cruise Line), peguei o cartão de bordo, subi a escada rolante, percorri o finger envidraçado e às 13h07 entrava na
minha cabine. Tudo em 23 minutos! Mais dois grandes navios de cruzeiros estavam
atracados, cada um em seu terminal. Aliás, é o normal nos principais portos decentes
dos EUA, Europa e Ásia.
Um dos três terminais marítimos de passageiros de Barcelona. Note que o embarque e desembarque é feitos por fingers, como nos aeroportos modernos.
Vista do porto de Barcelona, à bordo do Spirit.
Naquele caos execrável
que é o porto de Santos, já demorei três horas para embarcar. No Rio de
Janeiro, demorei mais de uma hora e meia. Devido à falta de infraestrutura, taxas
elevadíssimas, corrupção e péssimo serviço portuário, o Brasil é cada vez mais
um destino insignificante no florescente mercado de cruzeiros marítimos. Nessa
temporada apenas uns 17 navios fizeram cruzeiros na costa brasileira, enquanto
no passado chegaram a ser mais de trinta barcos. Porém sem vontade política e
condições confortáveis para embarque e desembarque (sem contar as nefastas
exigências de sindicatos altamente dúbios) não há negócios florescentes,
especialmente no verão brasileiro, com temperaturas acima de trinta graus centígrados
e chuvas abundantes que pioram ainda mais as já péssimas condições dos portos.
A maioria dos
passageiros do Norwegian Spirit é europeia e norte-americana. Há
cerca de 90 brasileiros a bordo, incluindo um grupo com 64 pessoas,
coincidentemente com vários conhecidos de Campinas e interior de São Paulo,
muitos relacionados com meus velhos tempos de PUC-Campinas.
Passageiros em
cruzeiros no inverno europeu em geral são pessoas que já fizeram outros
cruzeiros, curtem o clima tépido na costa africana e nas ilhas Canárias e
Madeira e apreciam a vida à bordo, cada um curtindo a sua preferência: jogos ao
ar livre, cassino, leituras, gadgets
(GPS, games, notebooks), boas bebidas e comidas que vão do mediterrâneo ou
asiático saudável até mesmo a mescla de carboidratos e açúcares letais que
alguns se aventuram a devorar. Zarpamos pontualmente às 17h00. Aliás, o navio
cumpriu todos os horários do cruzeiro, rigorosamente. A exceção foi em Málaga,
quando saiu com 15 minutos de atraso, algo desprezível.
Alvorada, nas costas do Marrocos, vista do salão de festas na proa do Spirit.
CASABLANCA (28 de
dezembro) – Estive pela primeira vez no Marrocos em 1998, num congresso da
AIEST (Associação Internacional de Especialistas Científicos do Turismo)
sediado em Marrakech. Na época conheci Casablanca rapidamente. Dessa vez fiquei
o dia todo andando pela cidade que, na verdade, é descartável em termos de
destinos turísticos, pois não é uma cidade estética ou urbanisticamente bonita,
apesar de algumas praças e jardins razoavelmente monumentais. O que vale é a
imensa mesquita Hassan II, situada à beira mar, uns três quilômetros do porto.
Entre a mesquita e o porto estão construindo um mega empreendimento imobiliário
com prédios comerciais, residenciais, shoppings e hotéis. Já comprometeu a
ampla vista que se tinha do templo. Como
era domingo, boa parte do comércio estava fechado e as pessoas aproveitavam
para passear com as famílias. Apesar do dia de descanso muçulmano ser na
sexta-feira, o Marrocos segue o dia de descanso cristão pela proximidade
comercial com a Europa.
O imenso minarete da Mesquita Hassan II, de Casablanca, vista do porto.
Entre o porto e a mesquisa Hassan II, estão construindo um complexo de prédios residenciais, comerciais, shopping e hotéis chamado Casablanca Marina. Uma pequena parte já está pronta.
Eu, em frente à mesquita e sua praça monumental.
FUNCHAL (30 de dezembro)
– Desde 1979, quando trabalhei na agência Abreu de São Paulo e comecei a viajar
no navio Funchal, tinha vontade de conhecer a ilha da Madeira e sua bela
capital, cantada e louvada por todos que lá foram (e com razão). Conheci
Portugal inteiro, os Açores, Málaca e Macau (antigas colônias portuguesas na
Ásia) mas, até então, a Madeira era um não-lugar,
uma ilha invisível, para mim. Fui um
dos primeiros a desembarcar e, com uma senhora norte-americana e suas filhas
(amizade de bordo), contratei um táxi para percorrermos boa parte da ilha: cabo
Girão, Curral das Freiras, pico do Areeiro (ponto culminante da ilha) e Câmara
do Lobos, onde antigamente os lobos marinhos encontravam refúgio na vila dos
pescadores, hoje apenas um simulacro turístico de seu rústico passado. Depois
andei pelas ruas de Funchal e almocei no restaurante Londres onde comi o famoso
bolo de Caco (pão com manteiga de alho) e a perca grelhada, um peixe delicioso,
com legumes, regado a vinho branco. O casario e os prédios mais altos de
Funchal se esparramam pelas montanhas, ao longo do anfiteatro natural que forma
a baía. O réveillon na ilha é famosíssimo por abrigar navios de cruzeiros e pelo
festival de fogos de artifício lançados do alto das montanhas colorindo os
céus, mares e desfiladeiros monumentais da ilha, mas esse foi um espetáculo que
não assistimos, pois zarpamos às 17h00, do dia 30 de dezembro, para Tenerife.
O Curral das Freiras, escondido em um vale montanhoso.
Do alto da trilha de onde se vê a área do Curral das Freiras.
Funchal está em um anfiteatro natural. Do alto vê-se todo o porto. O Spirit é o maior, à esquerda,
Cabo Girão. Um rochedo que se eleva a 580 metros sobre o mar.
Uma plataforma de vidro mostra a praia, 580 metros abaixo.
O Spirit, visto da avenida costeira de Funchal.
Cristiano Ronaldo nasceu na Madeira. Estou ao pé da estátua do gajo, recém inaugurada.
Zarpando da Madeira. I will be back... i hope so.
TENERIFE (31 de
dezembro) - Entre 1998 e 2000, dei aulas
na Universidad de Las Palmas de Gran
Canaria. Era um curso de uma semana, sempre em janeiro, para a
pós-graduação em Turismo. Falava sobre a pós-modernidade e as tendências do
turismo, hospitalidade e entretenimento. Ficava em um apartamento da
Universidade e tinha toda a liberdade de ficar mais alguns dias, então na época
visitei Tenerife e Lanzarote, ilhas para as quais agora regressava. Como já
conhecera o Teide, o majestoso vulcão canário, tendo passado uma encantadora
noite em sua encosta, no Parador Cañadas
del Teide, a 2.200 metros de altura, aproveitei para conhecer melhor a
cidade. Fui num locutório (onde há internet e telefone por satélite, super-baratos)
e telefonei para alguns familiares e amigos do Brasil, no último dia do ano de
2014. No navio, cada minuto de telefone custa 5 dólares e o minuto de internet
custa de US$ 0,50 a US$ 0,79. Para ter ideia da diferença, no locutório falei
uns 25 minutos, em vários telefonemas, gastando meros 3 euros.
O navio britânico Queen Elizabeth estava em Tenerife, nos aguardando.
O QE, visto de nosso navio, ao atracarmos em Tenerife.
Companhias como a Costa e Aída (na foto, um navio alemão) organizam tours guiados em bike, saindo direto do navio para ruas e trilhas.
Tenerife, no último dia de 2014.
REVEILLON – Zarpamos de
Tenerife às 17h00 e a nave entrou no clima de final de ano. Fui para o camarote
pela TV ver os réveillons da Ásia e Oceania e me preparei para o jantar. O
grupo de brasileiros, eu já enturmado com um monte de gente, foi para o
Cagney´s, onde comi uma salada de caranguejo e um filé de bisão, algo inédito
na minha dieta carnívora heterodoxa. Leve, saboroso e nutritivo. Tudo regado a
muito champagne. Depois fomos ao atrium lobby, decorado com balões
coloridos, música ao vivo e lotado de gente bem vestida e animada, para a contagem regressiva rum a 2015.
Fatalmente lembrei-me do filme O destino
de Poseidon, mas a nossa festa foi bem mais feliz. Entre abraços, beijos,
votos benfazejos e bebida derramada, rompemos a ano novo. Depois continuamos a
brindar e acabamos dançando e cantando em algum lugar da nave.
Há anos não via a amiga Sandra Mara, de Campinas. Fui encontrá-la à bordo e bebemoramos devidamente.
LANZAROTE (01 de
janeiro) – Acordei tarde e ao olhar pela janela do camarote (na verdade uma
charmosa escotilha redonda) vi a ilha que foi tomada pela lava vulcânica há uns
200 anos, um território árido com cactos, algumas videiras e onde José Saramago
morou nos últimos anos de sua vida. Passeei pela pequena vila, olhei o mar
límpido e cristalino e voltei a bordo para morgar pelo resto do dia. Demos
adeus ao Atlântico norte e regressamos para o Mediterrâneo.
MÁLAGA (3 de janeiro) – De volta à península
ibérica, à jangada de pedra que é
berço de minha cultura luso-espanhola, aproveitei o dia frio e ensolarado para,
com a amiga Sandra Mara, subir na Alcazaba, o antigo palácio e a fortaleza
islâmica que dominavam a Andaluzia, antes dos tempos da reconquista cristã
(1492). Depois flanamos pela cidade, fomos ao mercado e bebemos sangria com uns
tapas num bar local. Último porto do
cruzeiro e pensando nas coisas da vida, a saída do navio deu-me uma melancolia
frente à beleza da baía de Málaga, toda iluminada, sob a lua quase cheia
platinando o Mediterrâneo e o ar frio gelando as orelhas. Naquela tarde, na
internet, soube da morte da professora Eunice Mancebo, da Unirio. Ela deixou
uma bela mensagem de ano novo no facebook, dia 1º de janeiro, e depois teve um
infarto fatal. Estive com ela em Aveiro e no Rio de Janeiro, em eventos
acadêmicos, quando conversamos bastante. Pouco a conheci, muito a admirei. Bebi
uma taça de vinho à sua memória e agradeci ter convivido com alguém tão alto
astral.
Málaga não é grande (600 mil habitantes), mas possui terminais marítimos decentes.
Detalhe do finger. Simples e eficiente, mas no Brasil a burocracia e os interesses (sic) sindicais portuários não permitem essa luxúria turística.
Lua cheia sobre o crepúsculo em Málaga.
Málaga, último porto de escala do cruzeiro.
BARCELONA (5 DE
JANEIRO) – Chegamos ao porto às cinco da manhã. Acordei às sete, tomei um
desjejum leve e às 08h45 deixei meu camarote pela última vez. Peguei o elevador
até o deque 7, saí do navio depois de enfrentar uma pequena fila (umas dez
pessoas), percorri o finger até o
terminal de passageiros, apanhei minha mala na esteira, fui para a fila do táxi
(umas cinco pessoas) que estava devidamente organizada pela Polícia Portuária.
Às 09h04 entrava no táxi rumo ao hotel. Dezenove minutos para desembarcar com
tranquilidade, conforto e segurança.
As malas recebem quatro conjuntos de cores diferentes e são distribuídas em quatro esteiras rolantes...
... em um amplo espaço do terminal. Rápido, eficiente e seguro, como na maior parte dos portos europeus e dos países que respeitam os fluxos de viagens e turismo. Em 2007, fiz um cruzeiro pelo mediterrâneo oriental com a Royal Caribbean e foi a mesma tranquilidade. Destinos turísticos importantes na América do Norte, Ásia e Oriente Médio igualmente possuem facilidades portuárias para passageiros e cargas. Afinal todo viajante merece carinho e atenção longe de casa. Falando nisso, já é quase hora de voltar aos trópicos.
Bela Viagem e uma super aula de Infraestrutura portuária.
ResponderExcluirParabéns Trigo, uma leitura agradável e informativa
Maria José Giaretta
Bela Viagem e uma super aula de Infraestrutura portuária.
ResponderExcluirParabéns Trigo, uma leitura agradável e informativa
Maria José Giaretta
Que delícia ler tudo e viajar um pouco com vc.
ResponderExcluirUm beijo.
Andrea