terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Diário de bordo - Norwegian Spirit


Gosto dos navios. Curto dormir embalado pelas ondas, ler relaxadamente por puro prazer, degustar vinhos com comidas saudáveis, conversar com algumas pessoas, dançar em algumas noites mais inspiradas e olhar demoradamente as paisagens que vão se apresentando ao nosso redor. Não sigo a intensa programação de bordo, forço amizades ou me insiro em bandos organizados. Tampouco jogo no cassino, assisto os shows estereotipados ou me empanturro com gorduras, açúcares e calorias anódinas.

Nesta temporada de viagens tive uma reunião na Universidade de Girona (19 de dezembro), onde fui com o professor Antonio Sarti. Depois fiquei em Barcelona onde passei o Natal sozinho, no hotel. Foi a segunda vez que passei Natal só (a primeira foi em 1986, em Orlando, Flórida, quando era guia internacional da Abreu). É uma experiência exigente, pois nossa cultura exige um Natal familiar e gregário, mas era o que eu tinha de possibilidades, pois o navio zarpou de Barcelona só no dia 26,  regressando em 5 de janeiro. Iria na missa do Galo que, na Espanha, é realizada à meia-noite. Mas senti, à tarde, o início de um leve resfriado que me acompanhou nos próximos dias, então fui dormir. Dia 25, fui à missa na Catedral, celebrada pelo Cardeal de Barcelona. Depois almocei no 111, restaurante do hotel Meridién, localizado na Rambla, que serviu um menu de Natal com muitos vinhos da casa Marquês de Riscal e uma boa cava.

No dia 26 (dezembro de 2014) embarquei no Norwegian Spirit, um navio com 75.904 toneladas, lançado ao mar em 1998 (renovado em 2011), capacidade de 2 mil passageiros, com um sistema auto-denominado free style, sem horários fixos para alimentação e com boas opções de entretenimento e alimentação. Além do bufê 24 horas, há dois restaurantes com cardápios generosos e incluídos no pacote, além de seis restaurantes (dois japoneses, asiático, italiano, francês, carnes), pagos e com exigência de reserva antecipada (custam de 15 a 30 dólares, por pessoa, sendo que pratos como lagosta tem um acréscimo de mais 10 dólares).


O Norwegian Spirit atracado em Funchal, ilha da Madeira.

Viajando só, reservei uma cabine externa sem varanda e me esparramei na cama de casal. Levei um dos volumes de Fundação, do Isaac Asimov para ler, mas deixei para comprar minha literatura de bordo em Girona (onde Sarti me levou numa ótima livraria) e em Barcelona, cidade com opções escandalosas em todas as áreas da vida. Escolhi algumas obras de Joseph Conrad, dois romances de Carlos Sanrune (um espanhol pouco conhecido no Brasil), três obras místicas cristãs (Anthony de Mello, Tomás de Kempis e Raimon Panikkar) e um livro de Amand Puig sobre a simbologia teológica da Sagrada Família, fabulosa Basílica idealizada por Gaudí. A ideia não era ler tudo, mas ter opções de acordo com os humores dos dias e lugares, mas li o bastante.


Camarote 4566, deque 4, externa.

O embarque foi tranquilo e rápido. Cheguei no Terminal Marítimo às 12h45. Despachei a mala, passei pela segurança (raio X), fiz o check in (já preenchera tudo pelo site da Norwegian Cruise Line), peguei o cartão de bordo, subi a escada rolante, percorri o finger envidraçado e às 13h07 entrava na minha cabine. Tudo em 23 minutos! Mais dois grandes navios de cruzeiros estavam atracados, cada um em seu terminal. Aliás, é o normal nos principais portos decentes dos EUA, Europa e Ásia.


Um dos três terminais marítimos de passageiros de Barcelona. Note que o embarque e desembarque é feitos por fingers, como nos aeroportos modernos. 



Vista do porto de Barcelona, à bordo do Spirit.

Naquele caos execrável que é o porto de Santos, já demorei três horas para embarcar. No Rio de Janeiro, demorei mais de uma hora e meia. Devido à falta de infraestrutura, taxas elevadíssimas, corrupção e péssimo serviço portuário, o Brasil é cada vez mais um destino insignificante no florescente mercado de cruzeiros marítimos. Nessa temporada apenas uns 17 navios fizeram cruzeiros na costa brasileira, enquanto no passado chegaram a ser mais de trinta barcos. Porém sem vontade política e condições confortáveis para embarque e desembarque (sem contar as nefastas exigências de sindicatos altamente dúbios) não há negócios florescentes, especialmente no verão brasileiro, com temperaturas acima de trinta graus centígrados e chuvas abundantes que pioram ainda mais as já péssimas condições dos portos.

A maioria dos passageiros do Norwegian Spirit é europeia e norte-americana. Há cerca de 90 brasileiros a bordo, incluindo um grupo com 64 pessoas, coincidentemente com vários conhecidos de Campinas e interior de São Paulo, muitos relacionados com meus velhos tempos de PUC-Campinas.
Passageiros em cruzeiros no inverno europeu em geral são pessoas que já fizeram outros cruzeiros, curtem o clima tépido na costa africana e nas ilhas Canárias e Madeira e apreciam a vida à bordo, cada um curtindo a sua preferência: jogos ao ar livre, cassino, leituras, gadgets (GPS, games, notebooks), boas bebidas e comidas que vão do mediterrâneo ou asiático saudável até mesmo a mescla de carboidratos e açúcares letais que alguns se aventuram a devorar. Zarpamos pontualmente às 17h00. Aliás, o navio cumpriu todos os horários do cruzeiro, rigorosamente. A exceção foi em Málaga, quando saiu com 15 minutos de atraso, algo desprezível.   



Alvorada, nas costas do Marrocos, vista do salão de festas na proa do Spirit. 

CASABLANCA (28 de dezembro) – Estive pela primeira vez no Marrocos em 1998, num congresso da AIEST (Associação Internacional de Especialistas Científicos do Turismo) sediado em Marrakech. Na época conheci Casablanca rapidamente. Dessa vez fiquei o dia todo andando pela cidade que, na verdade, é descartável em termos de destinos turísticos, pois não é uma cidade estética ou urbanisticamente bonita, apesar de algumas praças e jardins razoavelmente monumentais. O que vale é a imensa mesquita Hassan II, situada à beira mar, uns três quilômetros do porto. Entre a mesquita e o porto estão construindo um mega empreendimento imobiliário com prédios comerciais, residenciais, shoppings e hotéis. Já comprometeu a ampla vista que se tinha do templo.  Como era domingo, boa parte do comércio estava fechado e as pessoas aproveitavam para passear com as famílias. Apesar do dia de descanso muçulmano ser na sexta-feira, o Marrocos segue o dia de descanso cristão pela proximidade comercial com a Europa.



O imenso minarete da Mesquita Hassan II, de Casablanca, vista do porto.


Entre o porto e a mesquisa Hassan II, estão construindo um complexo de prédios residenciais, comerciais, shopping e hotéis chamado Casablanca Marina. Uma pequena parte já está pronta. 



Eu, em frente à mesquita e sua praça monumental.  

FUNCHAL (30 de dezembro) – Desde 1979, quando trabalhei na agência Abreu de São Paulo e comecei a viajar no navio Funchal, tinha vontade de conhecer a ilha da Madeira e sua bela capital, cantada e louvada por todos que lá foram (e com razão). Conheci Portugal inteiro, os Açores, Málaca e Macau (antigas colônias portuguesas na Ásia) mas, até então, a Madeira era um não-lugar, uma ilha invisível, para mim. Fui um dos primeiros a desembarcar e, com uma senhora norte-americana e suas filhas (amizade de bordo), contratei um táxi para percorrermos boa parte da ilha: cabo Girão, Curral das Freiras, pico do Areeiro (ponto culminante da ilha) e Câmara do Lobos, onde antigamente os lobos marinhos encontravam refúgio na vila dos pescadores, hoje apenas um simulacro turístico de seu rústico passado. Depois andei pelas ruas de Funchal e almocei no restaurante Londres onde comi o famoso bolo de Caco (pão com manteiga de alho) e a perca grelhada, um peixe delicioso, com legumes, regado a vinho branco. O casario e os prédios mais altos de Funchal se esparramam pelas montanhas, ao longo do anfiteatro natural que forma a baía. O réveillon na ilha é famosíssimo por abrigar navios de cruzeiros e pelo festival de fogos de artifício lançados do alto das montanhas colorindo os céus, mares e desfiladeiros monumentais da ilha, mas esse foi um espetáculo que não assistimos, pois zarpamos às 17h00, do dia 30 de dezembro, para Tenerife.


O Curral das Freiras, escondido em um vale montanhoso. 


Do alto da trilha de onde se vê a área do Curral das Freiras. 


Funchal está em um anfiteatro natural. Do alto vê-se todo o porto. O Spirit é o maior, à esquerda, 


Cabo Girão. Um rochedo que se eleva a 580 metros sobre o mar. 



Uma plataforma de vidro mostra a praia, 580 metros abaixo. 


O Spirit, visto da avenida costeira de Funchal. 


Cristiano Ronaldo nasceu na Madeira. Estou ao pé da estátua do gajo, recém inaugurada.



Zarpando da Madeira. I will be back... i hope so.


TENERIFE (31 de dezembro) -  Entre 1998 e 2000, dei aulas na Universidad de Las Palmas de Gran Canaria. Era um curso de uma semana, sempre em janeiro, para a pós-graduação em Turismo. Falava sobre a pós-modernidade e as tendências do turismo, hospitalidade e entretenimento. Ficava em um apartamento da Universidade e tinha toda a liberdade de ficar mais alguns dias, então na época visitei Tenerife e Lanzarote, ilhas para as quais agora regressava. Como já conhecera o Teide, o majestoso vulcão canário, tendo passado uma encantadora noite em sua encosta, no Parador Cañadas del Teide, a 2.200 metros de altura, aproveitei para conhecer melhor a cidade. Fui num locutório (onde há internet e telefone por satélite, super-baratos) e telefonei para alguns familiares e amigos do Brasil, no último dia do ano de 2014. No navio, cada minuto de telefone custa 5 dólares e o minuto de internet custa de US$ 0,50 a US$ 0,79. Para ter ideia da diferença, no locutório falei uns 25 minutos, em vários telefonemas, gastando meros 3 euros.   


O navio britânico Queen Elizabeth estava em Tenerife, nos aguardando.


O QE, visto de nosso navio, ao atracarmos em Tenerife. 



Companhias como a Costa e Aída (na foto, um navio alemão) organizam tours guiados em bike, saindo direto do navio para ruas e trilhas.


Tenerife, no último dia de 2014. 

REVEILLON – Zarpamos de Tenerife às 17h00 e a nave entrou no clima de final de ano. Fui para o camarote pela TV ver os réveillons da Ásia e Oceania e me preparei para o jantar. O grupo de brasileiros, eu já enturmado com um monte de gente, foi para o Cagney´s, onde comi uma salada de caranguejo e um filé de bisão, algo inédito na minha dieta carnívora heterodoxa. Leve, saboroso e nutritivo. Tudo regado a muito champagne. Depois fomos ao atrium lobby, decorado com balões coloridos, música ao vivo e lotado de gente bem vestida e animada, para a contagem regressiva rum a 2015. Fatalmente lembrei-me do filme O destino de Poseidon, mas a nossa festa foi bem mais feliz. Entre abraços, beijos, votos benfazejos e bebida derramada, rompemos a ano novo. Depois continuamos a brindar e acabamos dançando e cantando em algum lugar da nave.



Há anos não via a amiga Sandra Mara, de Campinas. Fui encontrá-la à bordo e bebemoramos devidamente.

LANZAROTE (01 de janeiro) – Acordei tarde e ao olhar pela janela do camarote (na verdade uma charmosa escotilha redonda) vi a ilha que foi tomada pela lava vulcânica há uns 200 anos, um território árido com cactos, algumas videiras e onde José Saramago morou nos últimos anos de sua vida. Passeei pela pequena vila, olhei o mar límpido e cristalino e voltei a bordo para morgar pelo resto do dia. Demos adeus ao Atlântico norte e regressamos para o Mediterrâneo.

 MÁLAGA (3 de janeiro) – De volta à península ibérica, à jangada de pedra que é berço de minha cultura luso-espanhola, aproveitei o dia frio e ensolarado para, com a amiga Sandra Mara, subir na Alcazaba, o antigo palácio e a fortaleza islâmica que dominavam a Andaluzia, antes dos tempos da reconquista cristã (1492). Depois flanamos pela cidade, fomos ao mercado e bebemos sangria com uns tapas num bar local. Último porto do cruzeiro e pensando nas coisas da vida, a saída do navio deu-me uma melancolia frente à beleza da baía de Málaga, toda iluminada, sob a lua quase cheia platinando o Mediterrâneo e o ar frio gelando as orelhas. Naquela tarde, na internet, soube da morte da professora Eunice Mancebo, da Unirio. Ela deixou uma bela mensagem de ano novo no facebook, dia 1º de janeiro, e depois teve um infarto fatal. Estive com ela em Aveiro e no Rio de Janeiro, em eventos acadêmicos, quando conversamos bastante. Pouco a conheci, muito a admirei. Bebi uma taça de vinho à sua memória e agradeci ter convivido com alguém tão alto astral.



Málaga não é grande (600 mil habitantes), mas possui terminais marítimos decentes. 


Detalhe do finger. Simples e eficiente, mas no Brasil a burocracia e os interesses (sic) sindicais portuários não permitem essa luxúria turística. 


Lua cheia sobre o crepúsculo em Málaga. 




Málaga, último porto de escala do cruzeiro. 

BARCELONA (5 DE JANEIRO) – Chegamos ao porto às cinco da manhã. Acordei às sete, tomei um desjejum leve e às 08h45 deixei meu camarote pela última vez. Peguei o elevador até o deque 7, saí do navio depois de enfrentar uma pequena fila (umas dez pessoas), percorri o finger até o terminal de passageiros, apanhei minha mala na esteira, fui para a fila do táxi (umas cinco pessoas) que estava devidamente organizada pela Polícia Portuária. Às 09h04 entrava no táxi rumo ao hotel. Dezenove minutos para desembarcar com tranquilidade, conforto e segurança.



As malas recebem quatro conjuntos de cores diferentes e são distribuídas em quatro esteiras rolantes...



... em um amplo espaço do terminal. Rápido, eficiente e seguro, como na maior parte dos portos europeus e dos países que respeitam os fluxos de viagens e turismo. Em 2007, fiz um cruzeiro pelo mediterrâneo oriental com a Royal Caribbean e foi a mesma tranquilidade. Destinos turísticos importantes na América do Norte, Ásia e Oriente Médio igualmente possuem facilidades portuárias para passageiros e cargas. Afinal todo viajante merece carinho e atenção longe de casa. Falando nisso, já é quase hora de voltar aos trópicos.   




3 comentários:

  1. Bela Viagem e uma super aula de Infraestrutura portuária.
    Parabéns Trigo, uma leitura agradável e informativa
    Maria José Giaretta

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  2. Bela Viagem e uma super aula de Infraestrutura portuária.
    Parabéns Trigo, uma leitura agradável e informativa
    Maria José Giaretta

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  3. Que delícia ler tudo e viajar um pouco com vc.
    Um beijo.
    Andrea

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