Nos últimos anos da
última ditadura militar brasileira (1964-1985), em plena ressaca econômica
após as promessas frustradas dos anos dourados de prosperidade econômica, surgia uma das
primeiras distopias brasileiras. O romance Não
verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (lançado em 1981), desenhava uma estranha e inédita imagem de um país
arruinado e caótico, situado em um futuro próximo. A ditadura militar, em seu auto-celebrado Milagre Brasileiro
da década de 1970, propunha um futuro glorioso de um Brasil que mostrava sua força sendo tricampeão de
futebol (1970), campeão de Fórmula 1 (com Emerson Fittipaldi), detentor de
mulheres maravilhosas que conquistavam troféus de miss universo e que se fechava na sua imensidão cabocla e semi-rural,
em busca de sonhos satisfatórios e glamours
urbanos, especialmente no sul-sudeste maravilha.
Em meados dessa década de 1970, a primeira grande crise mundial do petróleo acabava com os
sonhos nacionalistas e megalomaníacos dos militares brasileiros e dos seus
tecnocratas plenos de pretensa sabedoria. O irônico é que a origem daquela crise era o aumento dos preços dos barris de óleo. Atualmente, em 2015, a
preocupação dos países em desenvolvimento produtores de óleo é justamente o baixo preço desses mesmos barris, pois diminui a entrada de divisas e causa
instabilidades econômicas como na Rússia, Venezuela, Brasil...
Os anos 1970 em 1980
foram de crises cíclicas, inflação, desemprego e carestia. Nesse contexto
Brandão descreve uma realidade brasileira ficcional nos seguintes termos:
“Lembra quando líamos os livros (de
ficção científica) de Clarke, Asimov, Bradbury, Vogt, Vonnegut, Wul, Miller,
Wyndham, Heinlein? Eram supercivilizações, tecnocracia, sistemas
computadorizados, relativo – ainda que monótono – bem-estar. E aqui, o que há? Um
país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica. Sempre fomos um
país incoerente, paradoxal. Mas não pensei que chegássemos a tanto. O que há
em volta de São Paulo? Um amontoado de acampamentos. Favelados, migrantes,
gente esfomeada, doentes, molambentos que vão terminar invadindo a cidade. Eles
não se aguentam muito além das cercas limites. Não há o que comer!” (pág.
92-93)
A cidade de São Paulo é
a estrela decadente do romance. Um ar seco, quente, malsão, paira sobre a
imensa mancha urbana onde o verde foi exterminado devido às sistemáticas agressões contra o meio ambiente. O discurso ufanista enaltecia a potência e
majestade da locomotiva brasileira, São Paulo arrastando o país, com sua economia e vontade pétrea de vencer. Atrás vinham, a reboque, os vagões da Federação, dos mais nobres aos mais simples e acanhados.
O que restou desse delírio são problemas toscos, um caos a mais no cenário nacional, uma cidade tão miserável
e violenta como qualquer dos rincões desprezados, distantes apenas no
geo-imaginário dos filhos bastardos dos barões quatrocentões.
São Paulo é um oximoro urbano pós-industrial.
São Paulo é um oximoro urbano pós-industrial.
As críticas contra os
desvarios da ditadura não eram exclusividade dos escritores, músicos e jornalistas. O humor denunciava e ridicularizava os laços emotivos, piegas e edulcorados de um regime
decadente e atavicamente jeca. Em junho de 1969, surgia no Rio de Janeiro O Pasquim, um jornal alternativo que atingiu a tiragem de 20 mil
exemplares em todo o Brasil. Tornou-se o principal veículo crítico ao regime
militar e marcou uma época crítica da repressão política e da abertura gradativa rumo à
nova democracia.
Em São Paulo, um marco foi o surgimento do Circo Editorial, em 1984, que lançou charges, histórias em quadrinhos e uma estética urbana paulistana saída dos traços de Angeli, Chico Caruso, Glauco, Laerte, Luiz Gê, Paulo Caruso e Alcy. A série em quadrinhos Os piratas do Tietê, destila uma violência absurda e surreal, tendo como eixo cênico principal as águas mortas do rio Tietê. “Cidade multicultural e cosmopolita, principalmente a partir do início do século XX, São Paulo desenvolveu-se com a chegada de imigrantes de várias partes do mundo e migrantes de outras regiões do país. A mistura de raças, crenças e comportamentos gerou um humor distinto, no qual estão presentes o comportamento esquentado dos italianos, a teimosia dos espanhóis, a ironia judaica, a aspereza do concreto e uma mentalidade racional, fria e objetiva de uma urbe voltada para o trabalho. As tribos que cultivam determinados hábitos (roqueiros, hare krishnas, militantes políticos, playboys, etc.) cruzam-se em calçadas, bares e edifícios”. (Humor Paulistano, São Paulo: SESI, 2014, p. 413)
Em São Paulo, um marco foi o surgimento do Circo Editorial, em 1984, que lançou charges, histórias em quadrinhos e uma estética urbana paulistana saída dos traços de Angeli, Chico Caruso, Glauco, Laerte, Luiz Gê, Paulo Caruso e Alcy. A série em quadrinhos Os piratas do Tietê, destila uma violência absurda e surreal, tendo como eixo cênico principal as águas mortas do rio Tietê. “Cidade multicultural e cosmopolita, principalmente a partir do início do século XX, São Paulo desenvolveu-se com a chegada de imigrantes de várias partes do mundo e migrantes de outras regiões do país. A mistura de raças, crenças e comportamentos gerou um humor distinto, no qual estão presentes o comportamento esquentado dos italianos, a teimosia dos espanhóis, a ironia judaica, a aspereza do concreto e uma mentalidade racional, fria e objetiva de uma urbe voltada para o trabalho. As tribos que cultivam determinados hábitos (roqueiros, hare krishnas, militantes políticos, playboys, etc.) cruzam-se em calçadas, bares e edifícios”. (Humor Paulistano, São Paulo: SESI, 2014, p. 413)
Piratas do Tietê, criação de Laerte
São Paulo, juntamente
com Rio de Janeiro, é personagem
problemática principal dos telejornais, novelas, romances, quadrinhos, filmes e
teorias acadêmicas. Congestionamentos, assassinatos, sequestros, enchentes,
luxo, cultura, artes e riqueza marcam o imaginário sobre a maior cidade da
América do Sul.
No Rio de Janeiro, as mônadas mutantes da irreverência no humor social, cultural e político, brotaram em1978, nos corredores e bares da Faculdade de Engenharia da UFRJ. Marcelo Madureira, Helio de La Peña, Roberto Adler, Claude Mañel e Bussunda fundam O Planeta Diário; em 1992, surgiu a revista Casseta & Planeta, de circulação nacional, que depois originou o programa de TV na rede Globo, a banda musical homônima e outras aventuras midiáticas como as Organizações Tabajara. A irreverência e as provocações atingiam toda a sociedade. Inexiste o politicamente correto. Os negros ainda são tratados de forma cafajeste pelos sinhozinhos "bacanas" e enturmados com as favelas; as mulheres são instrumentos de prazer e contemplação, escravas dos ditames da beleza oficial preconizada pelas redes de promotores, fotógrafos, criadores de modas e tendências artísticas e culturais. As que não se adequam ao estereótipo, ou não possuem proteção nas altas esferas do show lúdico-político, são simplesmente ignoradas ou servem de "escadas" para piadas machistas, sexistas, preconceituosas e vulgares. Mulheres muito gordas ou magérrimas, novinhas e tolas ou velhas e agressivas, vestidas como mendigas ou embrulhadas como peruas engalonadas, feministas exalando estrógenos ou sóbrias desfilando virilidade e atitude, todas eram um plantel de beleza, humor, crítica e acidez comportamental. Não é inocente a letra de Chico Buarque "Joga bosta na Geni, ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá para qualquer um ,maldita Geni." (1978). O humor iconoclasta atinge democraticamente os diversos segmentos sociais.
Enquanto isso, na dura realidade cotidiana parte da população urbana brasileira ainda reproduz as esferas do poder patriarcal, latifundiário, branco, cristão, detentor do poder econômico e político e forte influente do poder policial e militar. Os animais, os seres humanos e a natureza são propriedades dele, com a proteção do Estado e as bençãos de Deus, quase como no tempo de Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. Pensam que controlam tudo, então o real se esvai por entre os vãos das ruas, músicas e textos que abalam a ordem tão recente e dubiamente estabelecida.
De repente, entre a Copa do Mundo e as Olimpíadas, - e apesar dos avisos dos especialistas e acadêmicos -, surge crise hídrica para assombrar a orgulhosa urbe que, dias atrás, pensava a seca como praga endêmica do nordeste subdesenvolvido, carma ou castigo dos primos pobres e atrasados, motivos de piadas e olhares superiores, mera multidão ignóbil, ignara e ululante, geralmente petulante.
No Rio de Janeiro, as mônadas mutantes da irreverência no humor social, cultural e político, brotaram em1978, nos corredores e bares da Faculdade de Engenharia da UFRJ. Marcelo Madureira, Helio de La Peña, Roberto Adler, Claude Mañel e Bussunda fundam O Planeta Diário; em 1992, surgiu a revista Casseta & Planeta, de circulação nacional, que depois originou o programa de TV na rede Globo, a banda musical homônima e outras aventuras midiáticas como as Organizações Tabajara. A irreverência e as provocações atingiam toda a sociedade. Inexiste o politicamente correto. Os negros ainda são tratados de forma cafajeste pelos sinhozinhos "bacanas" e enturmados com as favelas; as mulheres são instrumentos de prazer e contemplação, escravas dos ditames da beleza oficial preconizada pelas redes de promotores, fotógrafos, criadores de modas e tendências artísticas e culturais. As que não se adequam ao estereótipo, ou não possuem proteção nas altas esferas do show lúdico-político, são simplesmente ignoradas ou servem de "escadas" para piadas machistas, sexistas, preconceituosas e vulgares. Mulheres muito gordas ou magérrimas, novinhas e tolas ou velhas e agressivas, vestidas como mendigas ou embrulhadas como peruas engalonadas, feministas exalando estrógenos ou sóbrias desfilando virilidade e atitude, todas eram um plantel de beleza, humor, crítica e acidez comportamental. Não é inocente a letra de Chico Buarque "Joga bosta na Geni, ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá para qualquer um ,maldita Geni." (1978). O humor iconoclasta atinge democraticamente os diversos segmentos sociais.
Enquanto isso, na dura realidade cotidiana parte da população urbana brasileira ainda reproduz as esferas do poder patriarcal, latifundiário, branco, cristão, detentor do poder econômico e político e forte influente do poder policial e militar. Os animais, os seres humanos e a natureza são propriedades dele, com a proteção do Estado e as bençãos de Deus, quase como no tempo de Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. Pensam que controlam tudo, então o real se esvai por entre os vãos das ruas, músicas e textos que abalam a ordem tão recente e dubiamente estabelecida.
De repente, entre a Copa do Mundo e as Olimpíadas, - e apesar dos avisos dos especialistas e acadêmicos -, surge crise hídrica para assombrar a orgulhosa urbe que, dias atrás, pensava a seca como praga endêmica do nordeste subdesenvolvido, carma ou castigo dos primos pobres e atrasados, motivos de piadas e olhares superiores, mera multidão ignóbil, ignara e ululante, geralmente petulante.
A seca faz parte de um
ciclo meteorológico agravado por problemas ambientais que se acumularam por
décadas graças ao descaso, à demagogia e à bonomia de gerações de políticos e
eleitores alienados e deslumbrados com sua Nova Iorque semi-tropical. Brandão
antecipa, em sua distopia, o descaso e a irresponsabilidade face à
catástrofe denunciada: “Esta emergência é
esperada há algum tempo. Algum? Eu nem tinha começado neste escritório e já lia
sobre os constantes sinais vermelhos que a natureza vem emitindo. É o alerta,
declaravam os cientistas. Os poucos cientistas que tinham sobrevivido e tentavam criar defesas. Cientistas.
Categoria mínima, marginalizada. Numa fase quase pré-histórica, o povo era
alheio aos seus avisos.” (pág. 27).
Assim como no romance,
desde os primeiros anos do século XXI, sucessivos governos, instituições e a
mídia, ignoraram ou subestimaram as sombrias previsões de geógrafos,
ambientalistas, engenheiros e sociólogos. Esgotos continuaram a poluir os rios,
mananciais foram invadidos e destruídos, a mata ciliar dos rios desapareceu,
terrenos foram impermeabilizados por construções que violentaram todos
os códigos de obras e edificações urbanos, submetidos aos interesses
predatórios de empreiteiras, construtoras e à uma visão carente de planejamento
urbano e qualidade de vida. O transporte público foi desprezado durante anos
em favor da política insana de carros particulares. As ferrovias foram
sucateadas e as linhas de metrô lentamente evoluem, em descompasso com outras
cidades ao redor do planeta. O egoísmo, a ganância e a indiferença marcam a
atitude média urbana nacional. A falta
de uma visão cidadã e de uma ética vivenciada por todos no cotidiano, provoca
conflitos em seus condomínios, bairros e ruas. Poucas áreas de lazer são
realmente públicas, poucas praças são acessíveis à toda a população e só
recentemente os veículos coletivos, os ciclistas e pedestres recebem um pouco mais
atenção do poder público. Uma imensa oferta de entretenimento, cultura,
gastronomia e vida noturna fabulosa,
convive com os gargalos terríveis de uma infra-estrutura frágil e tímida,
perante os desafios agudizados pela omissão ou pelo mal feito.
A distopia de Brandão
termina de acordo com os mais tenebrosos pesadelos dos paulistanos no início de
2015: “Um ano sem gota de água e as
represas de São Paulo esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as
igrejas. Organizavam procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços artesianos
começaram a ser abertos às pressas, às centenas. Por muito tempo, a secretaria
de obras trabalhou em poços. Todas as verbas foram desviadas para os programas
de água. Cada estado contou consigo, não havia possibilidade de ajudar o outro.
O problema era igual para todos, estavam à beira da calamidade. Charlatões,
fazedores de chuva, enriqueceram. As chuvas não vieram.” (pág. 99-100).
Cantareira ressequida...
Provavelmente o final
da história não será tão trágico e apocalíptico quanto o imaginado em Não verás país nenhum. Mas as
consequências serão graves, os prejuízos imensos os sofrimentos marcarão essa geração. Os mais ricos sairão
nos piores dias do racionamento de água para suas casas secundárias ou
fazendas; os mais pobres serão os primeiros naturalmente expulsos pela
falta da mais vital substância do universo que é a água, subproduto do ar, da
atmosfera que nos protege. Os tempos de energia e água a preços razoáveis
acabaram. Por todo o país as tarifas aumentarão com base em argumentos inexoráveis
como a “crise hídrica”, a necessidade de mais obras e manutenção, o aumento da
população e outras razões que a tecnocracia descobrirá a cada desdobramento da
crise.
Tudo isso nos ensinará
algo ou continuaremos a relevar fatos e dados, a postergar decisões impopulares
e a exercer a demagogia e os discursos fáceis e agradáveis aos políticos
oportunistas? A realidade brutal poderá servir para despertar a consciência
individual em prol dos interesses coletivos e de uma ética que seja entendida e
exercida de maneira natural por toda a sociedade.
São Paulo, na terceira
década do século XXI, será outra cidade. Espero que melhor e mais solidária,
inteligente e articulada.