terça-feira, 22 de maio de 2012

Funchal - Sobre barcos e memórias

Texto e fotos: Luiz Gonzaga Godoi Trigo
 
A história e a memória me pegaram de jeito em Lisboa. No último sábado fui conhecer o Oceanário, perto da estação Oriente. Depois fui andar junto ao Tejo, onde há uma marina.


De repente, lá ao longe, por detrás dos mastros, percebi a silhueta que reconheço porque marcou o começo de minha vida profissional. Acelerei o passo e meu cérebro começou a resgatar imagens e sensações que se passaram há 30 anos. Era ele. Certeza. Andei uns dois quilômetros ansiando que o acesso ao cais estivesse livre. Estava.


 Cheguei ao pé do barco e olhei aquela massa de aço, aquela velha carcaça que, desde 1961, flutua pelos mares do mundo. Então percebi que ele parecia morto. Pelo menos em coma. Subi a rampa lembrando a cada saliência os tempos em que embarcava orgulhoso. Eu era um dos “donos” do navio, da equipa de bordo que geria os cruzeiros na América do Sul, nos tempos em que a CTM – Companhia de Transportes Marítimos, uma extinta estatal portuguesa, detinha o último paquete de passageiros de Portugal e a agência Abreu o fretava para os cruzeiros de verão nos trópicos austrais. Era o início da década de 1980 e eu era jovem e imortal.


O barco de dez mil toneladas estava silencioso e escuro. Enferrujado e parecia abandonado. Parei no deck externo e gritei “Ó de bordo!”. Veio um operário meio espantado a dizer que estavam a recuperar a nave mas me deixou vagar e tirar fotos.


O barco atracado à espera das obras...


 ... e uma renovação.


A rampa de acesso às obras do barco.


A área da piscina e dos bares externos.


A popa com os motores que puxam os cabos de atracagem.
 

 A popa ....


 ... e a visão do Tejo, um rio que se mescla ao mar.
 

 O deck ecterno mais elevado.


O último deck com a chaminé.


 A ponte de comando ...


... toda desmantelada e à espera de novos equipamentos.
 

Senti-me um fantasma retornando a outro fantasma. Caminhei pelos destroços do meu passado, por corredores desertos, decks externos com tábuas corroídas e desconjuntadas. Grandes pedaços de ferrugem marcavam o barco como um cancro antigo. Por dentro, tudo desmontado, empoeirado, nas trevas de uma memória que teimava em lançar imagens de festas e músicas, comes e bebes, risadas e discussões que ali, naquele palco pálido, um dia resplandeceram na glória de sua efemeridade e à tona de mares profundos.

O operário me disse que ele está a ser renovado e volta a navegar. Perece que sim, pois muitos materiais e equipamentos novos estavam estocados em suas dependências desmontadas. Percorri, sozinho, seus decks silenciosos tomando cuidado para não tropeçar em destroços. Reconheci aqueles caminhos que percorri e vivi durante quatro temporadas (80 dias cada uma).
 

De bordo olhava a parte nova de Lisboa, ao fundo, sentindo a brisa e o sol da tarde de primavera.



Dessas janelas, da ponte de comando, vi os mares da América do Sul, de Mar del Plata até Manaus, vi alvoradas e crepúsculos, mares calmos e reluzentes e tempestades aterradoras, portos e selvas, a imensidão do Atlântico e a beleza insólita da Amazônia.


Entendi, mais uma vez, que o passado é morto a não ser em nossas memórias e que o presente – e o futuro – é o que nos resta. Despedi-me agradecido ao homem por ter me permitido uma renovação de antigas experiências e voltei ao cais de pedra.

“Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porque, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Coma o primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.”

Pois é, Fernando Pessoa,  mas dessa vez não foi o barco que largou do cais e sim eu que me larguei do barco atracado e desconjuntado e caminhei novamente pelo cais rumo ao meu futuro. Talvez um dia volte a ver o Funchal, mas dificilmente volto a nele navegar. Há outros barcos, outros portos e outros horizontes que se descortinam e que são igualmente efêmeros e fascinantes. E um dia esse velho barco há de virar sucata ou de afundar e terminar seu destino como tantos outros; assim eu, um dia, igualmente, hei de me juntar às outras memórias e depois ao olvido que a todos nos aguarda no oceano maior e mais misterioso que é o universo.



4 comentários:

  1. Maravilha esse resgate de memória prof.º Trigo!
    Como os nossos destinos são parecidos... ao ver o seu "artigo memorial", lembrei-me também quando o Funchal fazia a rota Natal/Fernando de Noronha, não muito tempo atrás, mas em 2003, e eu como prof.º da disciplina Transportes I e II na Faculdade Câmara Cascudo (Hoje Estácio Natal), tive a oportunidade, juntamente com mais de 20 alunos realizar uma visita técnica conhecendo todas as dependências mostradas em suas fotos.
    Para mim e para os alunos foi um motivo de muito orgulho e compreensão, relacionando teoria e prática, mesmo sem a sua experiência de vivenciar viagens que ficaram em sua memória.
    Parabéns e obrigado por nos proporcionar momentos de excelentes lembranças!!!
    Temilson Costa - Coordenador de Turismo e Hospitalidade SENAC RN

    ResponderExcluir
  2. Enquanto lia suas memorias, imaginei a juventude descobrindo tantos mares, admirando tantas selvas,os crepúsculos nos mares calmos e atemorizadas com as fortes tempestades. Mares que nos permite mergulhar de cabeca, boiar nas fantasias e viver intensamente a beleza da vida. Terminei pensando que assim como o Funchal , ha momentos onde ha necessidade da renovação.Esse, certamente caminhara algumas milhas a mais com a renovação e com o cuidado que muitos ainda tem em conserva-lo. Um dia, como mencionaste virara sucata,podera afundar, ou ate ser peca de museu, quem sabe. Mas,como ser humano, com alma e espirito, podemos ser renovados, restaurados e desfrutarmos de um oceano calmo, sereno e tranquilo na eternidade que nos espera.

    ResponderExcluir
  3. Nossa!! Viajei contigo!Recomenda alguma outra fonte (fora a sua memoria) sobre a historia dessas viagens antigas de cruzeiros?

    ResponderExcluir
  4. Oi, Trigo, esse post me fez lembrar aquele filme "A lenda do pianista do mar" no qual o narrador relembra a história a ser contada a partir da caminhada feita num velho navio. Abraços.

    ResponderExcluir