Texto e fotos: Luiz Gonzaga Godoi Trigo
A história e a memória me pegaram
de jeito em Lisboa. No último sábado fui conhecer o Oceanário, perto da estação
Oriente. Depois fui andar junto ao Tejo, onde há uma marina.
De repente, lá ao longe, por
detrás dos mastros, percebi a silhueta que reconheço porque marcou o começo de
minha vida profissional. Acelerei o passo e meu cérebro começou a resgatar
imagens e sensações que se passaram há 30 anos. Era ele. Certeza. Andei uns
dois quilômetros ansiando que o acesso ao cais estivesse livre. Estava.
Cheguei ao pé do barco e olhei
aquela massa de aço, aquela velha carcaça que, desde 1961, flutua pelos mares
do mundo. Então percebi que ele parecia morto. Pelo menos em coma. Subi a rampa
lembrando a cada saliência os tempos em que embarcava orgulhoso. Eu era um dos
“donos” do navio, da equipa de bordo que geria os cruzeiros na América do Sul,
nos tempos em que a CTM – Companhia de Transportes Marítimos, uma extinta
estatal portuguesa, detinha o último paquete de passageiros de Portugal e a
agência Abreu o fretava para os cruzeiros de verão nos trópicos austrais. Era o início
da década de 1980 e eu era jovem e imortal.
O barco de dez mil toneladas
estava silencioso e escuro. Enferrujado e parecia abandonado. Parei no deck
externo e gritei “Ó de bordo!”. Veio um operário meio espantado a dizer que
estavam a recuperar a nave mas me deixou vagar e tirar fotos.
O barco atracado à espera das obras...
... e uma renovação.
A rampa de acesso às obras do barco.
A área da piscina e dos bares externos.
A popa com os motores que puxam os cabos de atracagem.
A popa ....
... e a visão do Tejo, um rio que se mescla ao mar.
O deck ecterno mais elevado.
O último deck com a chaminé.
A ponte de comando ...
... toda desmantelada e à espera de novos equipamentos.
Senti-me um fantasma retornando a
outro fantasma. Caminhei pelos destroços do meu passado, por corredores
desertos, decks externos com tábuas corroídas e desconjuntadas. Grandes pedaços
de ferrugem marcavam o barco como um cancro antigo. Por dentro, tudo
desmontado, empoeirado, nas trevas de uma memória que teimava em lançar imagens
de festas e músicas, comes e bebes, risadas e discussões que ali, naquele palco
pálido, um dia resplandeceram na glória de sua efemeridade e à tona de mares
profundos.
O operário me disse que ele está
a ser renovado e volta a navegar. Perece que sim, pois muitos materiais e
equipamentos novos estavam estocados em suas dependências desmontadas.
Percorri, sozinho, seus decks silenciosos tomando cuidado para não tropeçar em
destroços. Reconheci aqueles caminhos que percorri e vivi durante quatro
temporadas (80 dias cada uma).
De bordo olhava a parte nova de
Lisboa, ao fundo, sentindo a brisa e o sol da tarde de primavera.
Dessas janelas, da ponte de comando, vi os mares da América do Sul, de Mar del Plata até Manaus, vi alvoradas e crepúsculos, mares calmos e reluzentes e tempestades aterradoras, portos e selvas, a imensidão do Atlântico e a beleza insólita da Amazônia.
Entendi, mais uma vez, que o
passado é morto a não ser em nossas memórias e que o presente – e o futuro – é
o que nos resta. Despedi-me agradecido ao homem por ter me permitido uma renovação
de antigas experiências e voltei ao cais de pedra.
“Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porque, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Coma o primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.”
Pois é, Fernando Pessoa, mas dessa vez não foi o barco que largou do
cais e sim eu que me larguei do barco atracado e desconjuntado e caminhei
novamente pelo cais rumo ao meu futuro. Talvez um dia volte a ver o Funchal,
mas dificilmente volto a nele navegar. Há outros barcos, outros portos e outros
horizontes que se descortinam e que são igualmente efêmeros e fascinantes. E um
dia esse velho barco há de virar sucata ou de afundar e terminar seu destino
como tantos outros; assim eu, um dia, igualmente, hei de me juntar às outras
memórias e depois ao olvido que a todos nos aguarda no oceano maior e mais
misterioso que é o universo.