Com a Copa do Mundo em
nossas vitrines reais e virtuais, o Brasil aprenderá duramente o que significa
ser um ícone global em pleno século 21. Estaremos à mercê, sob os olhares
críticos e câmeras indiscretas, de jornalistas, turistas, políticos, empresários,
jogadores, profissionais estilosos e viajantes que assistirão, in loco,
as maravilhas e vergonhas deste imenso país tropical recentemente
brindado com o título de “país fragilizado”, ao lado da Índia, África do Sul,
Turquia e Indonésia. Um sinal de que o velho BRICS (Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul) está, em parte, se esfarelando economicamente. Claro que
a oposição brasileira entende que o país está à beira de um colapso e o governo,
por sua vez, garante a excelente saúde financeira brasileira, ambos com base em
diferentes interpretações dos números, cenários e projeções.
Porém, a cerca de 100
dias do início do megaevento, não teremos que esperar muito pelas “horas da
verdade” e pelas contabilidades econômica, logística, esportiva e midiática a
partir do momento solene da declaração “que
os jogos comecem”. Então as desculpas, os mal-entendidos, as mentiras, as
opiniões contra e a favor da Copa serão confrontadas com o mundo hiper-real da
voracidade espetacular. Esse fenômeno analisará critica e
implacavelmente este jovem país belo e violento, sensual e encantador,
hospitaleiro e cínico, arrogante e tão carente de atenções internacionais para
com seus caprichos, sonhos e desejos.
Já desde fevereiro,
antes do Carnaval, nós e o mundo nos deparamos com o abismo de incertezas
gerado pelos atrasos e aumento dos preços das obras dos estádios, pelos
protestos contra a Copa, pelo fracasso de vários dos alegados legados da Copa
como mobilidade urbana, urbanismo, infraestrutura em geral, infra esportiva,
visibilidade internacional, desenvolvimento econômico, profissionalização do
esporte, empreendedorismo e geração de empregos.
Como a opinião pública
reagirá aos elogios, críticas, denúncias, ironias e piadas que serão feitos a
nós e às nossas coisas brasileiras, tão caras ao nosso amor-próprio e orgulho
latino?
Dois recentes exemplos
mostram a diferença de receptividade que, por sua vez, ilustra os limites que
toleramos para nossas suscetibilidades e frescuras.
O primeiro exemplo é
como uma reportagem deturpada da revista francesa France Football, (de 28 de janeiro de 2014), foi amplamente
compartilhada e comentada no Facebook. O post foi compartilhado mais de 200 mil
vezes com informações erradas sobre o conteúdo escrito pelos jornalistas Éric
Champel, Éric Frosio e François Verdenet. Essas incorreções são críticas
grosseiras sobre nossa política, segurança, economia, (des) organização além dos
problemas logísticos e infraestruturais do país. O texto é falso, foi
adulterado e exagerado, mas causou razoável impressão positiva, especialmente
entre os críticos da Copa e opositores do governo petista. Então os franceses
podem nos achincalhar que a gente tolera? Parece que sim, mas o texto é uma
empulhação. A revista francesa não foi tão ácida nas críticas e basta ler com
atenção para perceber que é uma falsificação com estilo rude e argumentos
frágeis ou mal articulados. Mesmo assim, foi um sucesso em parte das redes
sociais.
O texto falso que bombou nas redes sociais
Mas bastou a Adidas, patrocinadora
da Copa do Mundo, colocar à venda nos Estados Unidos, duas camisetas com dúbias
referências sobre nossa, digamos, pródiga e liberal sexualidade, para surgir indignação nas redes
sociais e no governo brasileiro. Após reclamações do Ministério do Turismo e da
Secretaria de Políticas para as Mulheres, no dia 25 de fevereiro de 2014, a
Adidas informou que suspendeu a venda da linha de camisetas que associava o
Brasil ao sexo. Uma delas tinha o desenho de uma mulher de biquíni com a frase lookin’ to score, ou “em busca de
pontos”, que são os gols, pois há uma bola de futebol no desenho. Porém os
maliciosos entendem que a mensagem faz referência ao sexo, pois pode também
significar “procurando faturar, se dar bem”. A outra modelo tem um coração que
lembra uma bunda de biquíni, formando a frase I love Brazil. Isso não pode, porque a nossa hipocrisia moralista
se ressente da realidade cruel que vivemos, de que somos um dos destinos de
turismo sexual do planeta. Esse segundo exemplo rompeu a tênue cortina de
tolerância que temos com as críticas ao nosso jeito de ser.
As camisetas da discórdia...
Porém, no mundo real, o Brasil, a
Tailândia e alguns países do sudeste asiático, certos países do leste europeu,
são conhecidos pela sensualidade de seus habitantes (masculinos e femininos),
pela liberalidade da prostituição local e dos serviços de entretenimento
articulados a jogos, álcool, sexo e turismo. Em meados do século XX, a bacia do
Mediterrâneo (Itália, Grécia, Argélia, Tunísia...) era conhecida como um
exuberante destino sexual para heteros e gays. Cuba (antes da revolução, em
1959) e o Haiti (antes da epidemia de AIDS, na década de 1980) eram destinos
sexuais para norte-americanos que, posteriormente, rumaram para o outro lado da
fronteira mexicana. O Brasil não é um destino sexual exclusivo, mas possui uma
imensa rede de prazer que envolve homens, mulheres e travestis, conforme vários
acadêmicos e parte da mídia já pesquisaram e relataram. O país é liberal,
possui bolsões de pobreza e goza, desde o século XVI, da simbologia de que “não
existe pecado no lado de baixo do Equador”.
Mas, para mercado interno, nós brasileiros, como
realmente encaramos a sexualidade comercial, ou seja, a prostituição? E como
encaramos a sensualidade tão elogiada de nosso povo? Com muita liberalidade e,
muitas vezes, com verdadeira vulgaridade. Publicidade de cervejas, imagens do
Carnaval em todo o país, várias festas populares, músicas (o funk, por
exemplo), os programas de reality show,
as novelas, os filmes (lembra a pornochanchada?), os históricos espetáculos
teatrais de revista, a antiga publicidade oficial da Embratur (décadas de 1970
e 1980), tudo isso exala estrogênio e testosterona. Exportamos garotas e
garotos de programas e travestis para países como Portugal, Espanha, Suíça,
Itália, Alemanha. Os viajantes que perambulam pelo país, brasileiros ou
estrangeiros, sempre encontram os endereços privados e os lugares públicos
(praias, praças, parques, festas de rua) onde o sexo é praticado em todas as
suas formas e estilos. Há inclusive a nefasta pedofilia, alvo de combate
efetivo do governo federal e de várias empresas de hotelaria ou turismo, mas
com sucesso apenas relativo, pois os abusos e interesses são tão grandes quanto
nossa extensão territorial.
Então a Adidas (e outros grupos
ou empresas) tem razão de sobra para “brincar” com nossa orgulhosa e informal
sensualidade. Somos motivo de piada nesse quesito em vários lugares do mundo,
mas nossos brios não permitem uma análise objetiva e específica sobre o que
acontece nas camas e redes de nossas cidades e recantos paradisíacos. Qualquer
estrangeiro que frequente certos camarotes ou bailes privados no carnaval,
algumas festas públicas particularmente picantes (além dos carnavais há outras
festas locais que acabam em orgias, mas não as citarei para não inflamar
pruridos paroquiais), festinhas particulares de empresas, governos ou outras
instituições (sic), sem contar todo tipo de lupanar, dos mais simples aos mais
exclusivos, terá a plena visão de que a esbórnia tupiniquim é livre, leve e
solta. Mas não pode falar ou mostrar, pois excede os limites de tolerância para
com nossos próprios sonhos úmidos e desejos incandescentes. Por isso a Adidas
foi tão rapidamente atacada pelo governo e por alguns internautas preocupados
com nossa boa “imagem” perante o mundo. A empresa capitulou porque tem
interesses comerciais imensos e a última coisa que quer é polêmica com o
Brasil, nervoso e estressado, às vésperas de uma Copa problemática e com o povo
nas ruas.
Imagem oficial do Ministério dos Esportes sobre o correto amor ao Brasil
Em cerca de 100 dias, estaremos
nus e abertos (eu escreveria arreganhados) à mídia global e à voracidade que engole
espetáculos, escândalos e reputações. Se a Copa for razoavelmente bem
realizada, menos mal para nossa “bunda exposta na janela”. Se os problemas,
protestos, falhas e imprevistos forem mais vastos e profundos, os vexames serão
on line e reverberados por
implacáveis críticos e analistas dos mais diversos meios de comunicação, dos blogs pessoais às mega empresas. Se a
opinião pública mundial foi leniente com a África do Sul (apesar de várias
reclamações com a organização da Copa, em 2010), talvez o mesmo não aconteça
com o Brasil. Nos últimos anos somos os novos e pretenciosos jogadores globais
nas arenas econômicas, culturais e políticas mais importantes do planeta.
Quisemos a todo custo sediar o show e agora, às suas vésperas, vemos que
perdemos tempo e dinheiro ao não deixar tudo pronto com antecedência e ainda
por cima enfrentamos uma oposição interna ao bom andamento dos jogos, uma
torcida “contra”, algo até recentemente difícil de conceber nesta “pátria de
chuteiras”. É bom que tenhamos serenidade e maturidade para aceitar as críticas
que forem cabíveis, pois queremos posar de excelentes aprendizes de feiticeiros.
Estaremos no centro dos palcos, estádios e festas, prontos para sermos
dissecados pelas redes e teias. Fizemos as nossas apostas e agora temos os
nossos jogos vorazes, especialmente fora dos campos. Os dados foram lançados, torçamos
para que nossos palpites estejam dentro das janelas de oportunidades imaginadas
e projetadas. E enfrentemos a realidade com maturidade e discernimento,
qualidades não tão fáceis de serem vivenciadas. Mas aprenderemos muito com os suntuosos
eventos.
Vejo Morpheus, em pleno
Itaquerão, na abertura da Copa, olhando as câmeras através de suas lentes
negras e vociferando suavemente às plateias terrestres: welcome to the desert of the real...
Luiz Gonzaga Godoi Trigo, 2014